Ouro de Tolo



não, eu não tenho nenhuma tristeza para esfregar na tua cara, nem mesmo vim aqui hoje bater na tua porta, porque a rua é larga e é do meu direito andar por ela, mesmo naquelas noites que o quarto tá quente mas a noite tá fria e você vai pra janela pensar em qualquer coisa que parece comigo mas não é bem eu-mesmo, e isso te deixa contente, porque é bom ter uma mentirinha que ajude a dormir.

eu não vou pedir licença, se o meu nome está na placa. nem vou ficar em casa quando estou vestindo roupa nova e um sorriso que há muito se resignou com o que há. você não é a primeira, e mesmo que fosse a última, ia tropeçar na minha gratidão, porque acabaria por me tirar do peito a dúvida, e ia me devolver de onde vim e para onde quero voltar tão logo pare de estar certo quando tudo que quero é o prazer de ser o último da classe.

é complicado caminhar por sobre a expectativa alheia, sobre olhares desta côrte chinesa que sempre espera de sua majestade um gesto soberano de condenação abrupta, dessas que se guarda na manga da roupa e que devolve o sorriso ao sádico. eu não tenho nada disso, eu não tenho um não, nem um sim, nem mesmo quero estar no meio, como uma espada embanhada. talvez te espante tudo isso, talvez te fruste, eu não sei, sinceramente não sei. eu não passo meus dias procurando atalhos para evitar a grama do que já foi um quintal, mas também não vou caminhar por sobre os móveis dessa sala, muito menos tirar a poeira das porcelanas que com tanto esmero você acumulou.

eu realmente não passo meus dias pensando no que vou dizer quando quero dizer aquilo que queria dizer. eu não gasto minhas horas costurando pensamentos em algum poema antigo, ou dedilho meu violão a dor fabricada do que nada mais foi que um gesto de coragem, do qual me orgulho e muito. cada visita que eu faço no espelho é para constatar que perdi um ano, e que possivelmente serei enterrado num desses caixões que não marcam os ombros nem pesam nos braços de quem o carrega. e quando esse dia vier, possivelmente ninguém que seja você vai saber, ou lembrar, ou se perguntar. você estará em outro país, em outro abraço, em outro quarto... este destrancado (espero eu), com uma janela virada para o infinito e a porta aberta como um olho egípcio, encarando com volúpia um corpo que te quer muito bem.

a única coisa que me dói, se eu posso me permitir este imenso luxo, é ver que tudo que eu disse é marca de dedão na areia, coisa que o mar apaga no primeiro desligar da luz, ou do sol. é de notar no parco noticiário que o vento sopra na minha porta o atavismo da mania de querer ser pior pelo prazer de se ver na pior. às vezes meu orgulho me diz que com isso você quer chamar minha atenção, como quem grita para um garoto de recados as compras por fazer, delegando aos outros aquilo que é responsabilidade tua, a dona da casa. desculpe a crueza desta carne exposta, mas com isso tudo a única coisa que você ganha é a certeza de construir tuas próprias dores, com as quais não compactuo. de longe, eu me compadeço, e de longe vou continuar assistindo a tudo isso, porque cada lâmina que tu cravas em teu próprio peito é um cabo a mais que me impede de te dar aquele abraço, aquele que tu queres tanto.

não preciso te lembrar do óbvio, nem mesmo te dizer que não guardo de ti aquilo que sei que não merece ser guardado. sou um menino crescidinho, isso acredito que tenha certeza. nem perca seu tempo imaginando o que me vai por dentro, porque eu tento ser como filho de plutão e me abraçar à órbita silenciosa como quem abraça um novo credo. sou fervoroso devoto da palavra não dita, e mais do que mania da pedra gelada, isso tudo não passa do profundo respeito que tenho pelo direito das pessoas de serem o que elas querem ser, como elas querem ser, e quando elas assim entendem.

então, como último exercício, ao ler isto tudo, pense que não estou falando de você, porque essa é uma certeza que você não tem. se quer um outro desses meus conselhos, exercite a humildade de se achar especial do jeito certo, do jeito que foi, é, e sempre vai ser, mas não se considere imprescindível. e quando aqui chegar não pense "ora mas veja você, que impertinente!" ou "céus, ele de mim fala!". não, porque cada linha do que aqui está na verdade é a teimosia do que se espremeu entre os dedos e caiu na tela. eu não estou falando de você, porque não sou eu quem escrevo. sou um desses heterônimos que escorrem da mão e caem no papel. de qualquer maneira, fica o recado (dele ou de mim dado), ou não.

final um tanto budista: um texto em que disse tantas coisas para no final pedir que tudo seja nada. sim, é isso mesmo que eu queria. dificilmente eu explico as coisas aqui, mas para ficar bem claro: por isso "Ouro de Tolo", porque nem tudo que brilha se deve levar à boca para tampar o buraco do dente. todas estas letras juntas são para pedir que você respeite em si um pouco o direito de não ter nada, de não ser nada, e de viver o positivo disso. alegria muitas vezes nada mais é que a confusão do barulho, já a felicidade é tijolo na parede.

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