+você, -eu



eu estou há exatos muitos minutos sentado aqui encarando essa parede branca só para descobrir que a coisa mais difícil do mundo é inventar babado para essa saia de pano de costura simples. o barroco é realmente ofício para enfeitar o buraco da bala, reboco artesanal em parede roída pelo desafeto da desavizada: não tem como molhar o bico da pena na tinta que me vai por dentro agora e esperar sangrar outras daquelas mil baboseiras que carpi com rima e método. acho que tua primeira contribuição é desarrumar minha auto-comiseração.

estou há alguns anos andando por cima de um chão de livros, manchando as páginas com a lama dos dias que antecederam a invenção da matemágica, procurando no escaninho das almas uma porção de sujeira, uma mesquinharia, uma promessa não cumprida que me desse aquele alento de desgraça pouca é bobagem, que me fizesse ansiar por cometer todos os crimes, assim conquistando a paz, o gozo de poder deitar sob as telhas do meu chiqueiro, abrigo do sol.

e eis que conquistei a alegria dos de focinho curto: tornei-me o rei da floresta! a sujeira endureceu e me deu a tez corada dos sem-vergonhas e um cheirinho gostoso de cinismo e pura imbecilidade. ria, ria o sorriso largo dos desdentados que não sentem o odor acre do próprio hálito. tinha um só pudor: o de guardar o cetro dentro da calça, que afinal... eu devia respeitar algumas convenções.

então, para tornar longa a curta história do curto, eu era a besta, a fera. alvejado? sim. ferido? sim? morto? não, mas fazia questão de enfiar o dedo no buraco, e o orgulho ferido que vazava eu usava pra escrever mil nomes nas mil paredes que me esfreguei: andando por aí, eu nunca me perco. era formiga, ou coisa pior.

agora vamos virar a página.

você apareceu. eu tinha visto, melhor, eu tinha ouvido alguma conversa de jaula aberta, dessas que os filmes retratam, que o aparecimento de um grande amor funciona como a sulfa em ferida da segunda-guerra: estou redimido! aparei o pêlo e pela primeira vez em tempos bebi água na tigelinha. de resto, fiquei ali catolicamente parado, esperando a minha nuvem.

não veio. mandei telegrama pro céu, cutuquei o anjo com vara curta, e recebi de retorno uma bofetada, dentro do templo, que me jogou em cima da minha banca de antigos negócios: eu ainda era acionista majoritário no mercado do açougue, e não era porque estava de dieta que isso me habilitava a descobrir a cabeça. fiz isso, e levei no cocoruto.

oscilei. e no oscilar eu enjoei, e enjoando a gente vai vomitando quem comeu. fiquei um tempo assim, com um lencinho na mão, sendo obrigado a recusar as delícias de hoje por conta da bile de ontem que me fermentava as entranhas. depois de um tempo, melhorei, mas o feito estava estragado: agora eu tinha que me comportar.

foi aí que eu virei a página, de novo.

você reapareceu. e aí entendi que você não era um anjo, ou uma nuvem ou um guindaste para me tirar da pocilga: você era a chance. não era uma princesa ou uma senhora de mil feitos, ou mesmo um príncipe dentro da tua armadura de seios fartos e lindo sorriso. você era como aquele ideograma chinês, com o qual eles escrevem "oportunidade". você não tinha espada, você nem mesmo consegue escapar de mim quando eu te prendo nas pernas e te puno com cosquinhas todas as tuas malcriações do dia. você não tem escudo, até mesmo que o teu peito é como o dia que vai começar amanhã, onde nada está, mas tudo pode ser escrito. você não é: simples, não é, e não era mesmo para ser. o cuidado e o trabalho estão comigo.

eu que tive e tenho que ser alguém para poder viver você, a chance. não aproveitando a oportunidade, ela passa, e com ela você. ajudar-me a entender isso é a tua segunda contribuição pra mim. por isso, não se cobre, não se culpe, não espere, não antecipe: você é uma letra escrita, já está, é. eu sou por fazer, por construir, por viver. por querer, vou atrás, e na frente vai você, sorrindo e fazendo piada das minha chatices, enquanto solta esse perfume de planta (que não é bicho), amiga do sol.

era isso que queria te dizer. como disse lá em cima, não tem como fazer floreio com tinta fresca. você é como um função, equação ou fórmula muito bem resolvida: linda + linda = cada vez mais linda. eu cada vez + me sinto + feliz de poder ⁄ a % da vida (que antes de você era ∅) que me cabe contigo.

obrigado por tudo, obrigado por ter me ajudado a pular de reino na natureza, e principalmente, obrigado por ter introduzido o cálculo racional e o senso da importância do agora, na minha vida. vou te ser ∞ grato.