acab





























na china as crianças
aprendem a tomar água da chuva.
no sudão alguém se explodiu,
ou não, não importa.
o japão contribui todos os dias
para a diminuição do atum global,
e eu me pergunto que mundo é este
que os peixes tomam água e
as criancas da china
não.

a minha indignação, acho eu,
e tão grande quanto aquele canhão
que o paraguai perdeu, e a gente
achou na ponta da baioneta
de algum amigo de inglês
que montava bem o cavalo,
que é o meu horóscopo
chinês, veja você,
a história é cheia dessas
e de tantas outras
coincidências.

eu não consigo me conformar
com a falta de água, a falta de luz,
luz! falta, como falta e faz falta
uma mão no escuro, seja onde for,
abaixo ou acima do teu trópico
de cancer, não importa,
no sudão, vi dizer,
isso também não importa,
ou muito, não sei...

eu só consigo pensar no atum,
e no chinês!

vai ver é o tempo que deixa
toda a gente meio mística,
eu incluso:
eu me pego pensando, eu
me pego marcando
uma consulta,
uma acupuntura, um ponto,
uma costura
no meu corpo astral, adoro!
essa tal era de aquário,
que lava da gente
tudo que é miasma,
com a água que devia chover
no japão.

eu não consigo não
parar de pensar
no atum que comi,
na água que bebi,
e no pedacinho de tripa
que tá dentro de mim.

hoje uma criança
me parou na rua,
não, não era chinesa, logo,
não vi

hoje alguém morreu,
e morreu tão bem que
ninguém viu.
foi quando, indignada
de não ser alguém,
resolveu explodir
em mil cores e odores
de incômoda putrefação:
mesmo com toda aquela
algazarra festiva
de mosca e berne e verme,
nin-guém-viu

hoje um peixe
me parou na rua.
era saboroso,
e por isso,
eu comi...

no fim do dia
recebi um email,
era do greenpeace,
e, envergonhado, abri a
bonita missiva que
me alertava para o
problema que ninguém
ninguém-ninguém
quer ver, menos
eu@eu:

neste exato momento
o japão está matando
as baleias, e eu
não posso, não devo,
não vou - não desta vez -
ficar calado,

mas antes...

um copo d'água
de porcelana e
bem gelado!

ahoy.

pró-nomes

eu me indigno sim. claro que eu me indigno! já foi o tempo de bater na porta, terno aprumado, sorriso de bom moço. já foi o tempo de te ver de longe, passando na praça e fazer que nem te via para ver se você notava o sorriso que eu carregava no bolso da camisa, que é do lado esquerdo, sempre. já foi também toda a conversa brejeira, sapo teimoso que só faz barulho de noite porque ninguém ouve, ou quando ouve, liga pro síndico e diz pra baixar o volume do amor, que - vá lá - gostar faz bem, mas não precisa derrubar o prédio em cima da cabeça de quem não se gosta, como a gente.

já foi o tempo de dizer meia coisinha, empilhar o pequinininho para quando viesse o grande não assustasse ninguém. já foi o tempo de fingir que era bobagem, de andar de cabeça pra baixo pra ver se o coração escorregava pela goela, e de dizer para todo mundo que esse incômodo que vai no peito é pigarro, do cigarro que você fumou quando ouviu pela primeira vez aquilo que você já sabia que eu ia dizer.

quem diz já foi diz que fica pra dormir, e puxa o lençol e faz questão de acordar de madrugada, porque o quarto tá frio, ou estava.

e aí eu saio de casa e bato a porta. antes eu vesti meu terninho e fui pra rua pra ver a rua passar porque tava com isso entalado no peito. eu que aprendi a ouvir o silêncio tateando no escuro, tenho também o direito de ter meu dia de repartição. de acordar com o som do carimbo batendo na minha porta, de te ver com a papelada na mão me dizendo "olha, tá tudo certo". tenho sim, tenho até direito de cansar da poesia, do dito que se diz meio que se querendo dizer tudo mas sem falar tanto para não causar espanto, aquele de sempre. tenho direito à vontade de dia claro na praia, de deitar na areia e pensar que carangueijo são os outros, não meu bem.

não tenho? eu não estou te pedindo hora extra, que passe a noite em vigília das tuas tolices de menina que tanto me faz bem, mas quero sim férias. quero poder sentar no lugar mais alto do meu feudo e abrir o peito para você pousar. tenho essa vontade sincera de apenas ser a pista de de um vôo nada ousado, bem planejado e pensado, porque quem diz quero te ver diz estou a caminho e corre logo pro abraço, porque gentileza não é comida que se requente.

eu quero o simples: pão com manteiga, café com leite, e não me incomodo de preparar isso todos os dias. quero calma, quero paz, com açucar mesmo, servido na caneca, tudo quentinho, porque entre a gente as coisas são sempre assim. quero acordar um dia e não me espantar mais de você estar ali. quero a rotina, pasta de dente e briga de toalha molhada em cima da cama. não quero só isso, mas quero isso um pouco... porque eu sou assim também. quero a certeza que só quem dividiu o mesmo saco de pipoca sabe. o egoísta é aquele cara sozinho, no fundo do cinema, que sempre paga inteira.

eu quero um pouco, sim, eu quero. quero eu, eu quero. esse tempo todo eu só ouvi eu do outro lado da mesa, e balancei a cabeça e topei. agora eu peço que você seja menos eu e me deixe ser mais você e me dê o gostinho de um mimo, um abraço, um afago. que me diga o que sabe que quero escutar e o que preciso escutar: eu sou tão eu quanto você e como você mereço. sinto-me muito confortável em estar aí para você, mas você tem que estar aqui quando eu quiser também. isso se chama nós.

agindo assim, morreu eu, morre você e nasce a certeza que ambos queremos. não tem outro caminho. o nosso por enquanto é pelo ar, dia vem que vai ser pela terra, e até nadaremos contra a maré só pelo prazer das braçadas juntos. todavia, certo agora é que passarinho que não voa cai do ninho, vem a cobra e nhac, come. não é ameaça, é a biologia do desinteresse e falta de empenho. só vive quem ousa: o mundo é sempre maior que o raimundo, porque ele é um só.

apesar de você já saber o que diz que quer saber, se quer descobrir algo, mesmo o sabido, vai ter que começar quebrando o espelho pra ver o que tem dentro da parede. marrete daí que eu marreto daqui, e assim qualquer muro cai mais fácil e a gente faz aquela reforma no nosso quarto, que há tanto tempo estamos planejando, juntos.

quem diz sentir diz trabalho. arregace as mangas, ou então se contente com o contracheque magro e comida da prisão: sim, nenhuma parede - por mais colorida que seja - cai sozinha.

amo você

barulinho bom



Déjame que te hable también con tu silencio
claro como una lámpara, simple como un anillo,
te pareces a la noche callada y constelada
tu silencio, otra estrella, tan lejano y sencillo.

Cecília



Não: já não falo de ti, já não sei de saudades.
Feche-se o coração como um livro, cheio de imagens,
de palavras adormecidas, em altas prateleiras,
até que o pó desfaça o pobre desespero sem força,
que um dia, pode ser, parece tão terrível.

A aranha dorme em sua teia, lá fora, entre a roseira e o muro.
Resplandecem os azulejos- e tudo quanto posso ver.
O resto é imaginado, e não coincide, e é temerário
cismar. Talvez se as pálpebras pudessem
inventar outros sonhos, não de vida...

Ah! rompem-se na noite ardentes violas,
pelo ar e pelo frio subitamente roçadas.
Por onde pascerão, nestes céus invioláveis,
nossas perguntas com suas crinas de séculos arrastando-se...
Não só de amor a noite transborda mas de terríveis
crueldades, loucuras, de homicídios mais verdadeiros.

Os homens de sangue estão nas esquinas resfolegando,
e os homens da lei sonolentos movem letras
sobre imensos papéis que eles mesmos não entendem...
Ah! que rosto amaríamos ver inclinar-se na aérea varanda?
Nem os santos podem mais nada. Talvez os anjos abstratos
da álgebra e da geometria.

existência & ismos



a idade da razão, esta nossa, é uma idade imoral. é uma idade líquida e perigosa que escorre pelos dedos, onde tudo é imagem e reflexo e fenômeno.

é quando você escuta tudo aquilo que não queria e pensa "ok...". como assim ok, cacete? tu tinhas um sonho, uma vontade, um tesão que fosse! tu te orgulhas de ti mesmo que a tua reação é não ter reação, é você se acha velho e sábio e no teu íntimo fica gritando contigo mesmo istonãovaimeatingiristonãovaimeatingir e por fora é toda aquela falsa calma de príncipe que tinha Napoleão na porta sem pedir licença para entrar. mil exércitos roendo os teus pés de moça e tudo que tu pensas nesse momento é "ok"

e aí você me encontra aqui, com a roupa suja de mais este dia que passou e senta na minha mesa: é deselegante, que senta e não pede copo. eu ali tomando algo para me esfriar as idéias e você nesse mutismo de irmão mais velho olhando a louça que adorna as outras mesas, e apesar de estar com fome quando eu te pergunto se vai algo para comer, vai, tá com cara de quem não comeu nada o dia inteiro, você me olha e diz "nada não, pra mim tá ok". sério, se eu fosse feito de outra matéria mais tangível que um pedaço irado de ti, eu ia enfiar a mão nessa tua cara redonda de fabricar consensos

eu sou obrigado a buscar a conversa: o que foi? você diz que não foi nada, porque o nada é a vizinha devassa desse ok que tu carrega no peito, calibre fino de pistola automática de matar incômodo antigo. e eu mastigando cevada, olhando para a tua cara de peixe criado em cativeiro, imaginando se calo a minha boca e pego minha pasta e vou pra puta que pariu da tua cachola, ou se fico ali, esperando o milagre. como sou consciência, meu ofício é sempre tentar dizer alguma coisa de algum jeito na hora que dá.

vá, diga lá cacete, o que se passa? mil suspiros depois você abre a boca, e é para pedir um copo! aleluia irmão, tava quase rezando a missa para ver se o vinho te deixava mais alegre. cara chato você às vezes viu, e acha que vai resolver tudo com esse anacronismo de pobre coitado que perdeu a última caravela. anda com esse bíblia toda riscada debaixo do braço, e acaba tentando o velho ofício de vender verdade na freguesia alheia. você se diz livre, mas eu que bem queria me ver livre de você.

sim, já que você tocou no assunto eu vou te falar: cansa viu? cansa esse teu papo quadrado, esse teu jeito de sentar com a perna dobrada para não sujar a barra da calça. esse teu olhar perdido de uma sabedoria também ela perdida. de ficar toda a vez enchendo o saco para tudo sair do jeito "certo" e faz questão de empinar pipa quando ameaça tempestade, por ter preguiça de caçar vento. e aí quando molha a mariola, vem choramingas pra casa, e senta na varanda e vara a noite entre "puxas" e "por que foi assim?"

outra? garçon mais uma! é... tô vendo que estamos rebeldes hoje hem? duas cervejas, daqui a pouco vai sair carregado daqui. lembra quando a gente saía junto pra beber? lembra das degustações...? é, eu sei... eu também lembro das bobagens... mas quer saber? foi bom não foi? a gente riu, a gente se divertiu e a gente era mais A GENTE: sim, era eu e você e o.. qual o nome dele? o outro, da tua cabeça também? sei lá... bobo brincalhão! adoro ele! pena que ele é criança e dava confusão ficar com ele até mais tarde na rua, mas enfim... lembra né? não precisa ajeitar o nó da gravata e fazer cara de santo recém canonizado: tô sabendo que não é mais a tua. mas cá entre nós, precisa também essa pompa toda de dia de procissão? se não tá na rua tá em casa sendo o motivo do velório, morto. cadê o budismo, cristão?

não... não... vamos parar por aqui. nada de misturar, nada de beber essa cachaça amarga pra ver se destila essa tristeza do teu peito. eu sei que não tá nada ok, e eu já pedi uma porção de batata frita. mas fazer o que companheiro? a vida é isso mesmo... tem de tudo no circus mundi. tem sal aí chefe? obrigado... então... escolhas. há de se fazer o que? eu penso que continuar se divertindo. quando você chegou eu estava aqui sozinho, e tem tempo que estou sozinho aqui porque você saiu nessa de fazer do mundo uma igreja... e quando tu entras nessa né? olha... não, não estou te desrespeitando, só acho que isso de religião é pior do que essa vodka ruim que tá aí no cardápio: sem moderação, mata também. quem sou eu pra te criticar, eu mal tenho tempo para pensar em outra coisa que não seja o aqui-agora, mas enfim... eu já te vi antes assim, e pelo que lembro, não funcionou muito bem não é?

a idade da razão, essa nossa, é de todo mundo também. então se acostume com o comportamento nada razoável das pessoas, a começar pelo seu: gostar é a arte mais difícil do mundo, quando tentada com a cabeça. enfiar um pincel no peito dói sim, mas só assim se cutuca o coração....

paga a conta?

Argolas Douradas




Que era uma mulher e amava essas as considerações de nível geral repetidas todas as manhãs, antes de descer às minúcias cotidianas. Depois vinham os problemas. As perguntas. Que era uma mulher não havia dúvida, embora o ser despenteado e vagamente sujo recém-desperto a olhasse um tanto assexuado do fundo do espelho. Concretizada a primeira afirmação (ou fato, como diria mais tarde aos alunos do segundo ano primário) -concretizada a primeira afirmação, como ia dizendo, ela afirmava-se e cumpria-se em mulher, passando em seguida à segunda. Que amava. Liberta do entorpecimento do sono que a perseguia até então, encarava-se antipatizada consigo mesma. Que amava? Pedra no caminho, a interrogação afazia tropeçar um pouco despeitada. Não com a pedra nem com o tropeção, que pedras sempre havia e tropeções eram fatais, mas com não poder passar adiante, sacudindo a poeira do vestido e acariciando prováveis arranhões. Lavava o rosto, fazendo-se mais e mais inteligente à medida que se despia dos acessórios do sono. Resíduos nos olhos, fios de cabelo fora do lugar, gosto ruim na boca – com sabonete, água, pasta e escova de dentes ela os eliminava um a um. E em sagacidade, crescia. Cabelos erguidos num coque, quase gênio, voltava à afirmação. Que amava. Pois afirmara e não apenas, modesta, indagara. Passava a outras operações. Matinais, femininas. No corpo, aquela quase idiota sensação de sujeira que o sono deixava. Sentia-se imoral ao acordar. Incestuosa. Principalmente quando sonhava consigo mesma. Ah houvesse um jeito de dormir completamente só, sem a companhia sequer de si mesma. Não havia. Incestuosamente, então, deitava-se às dez da noite para acordar às seis da manhã. Oito horas exatinhas. Às vezes detinha-se e pensava: antilunar o meu sistema. Quando deitava, a lua ainda não tinha vindo; quando acordava, já fora embora. Carregava pesada e magoada uma lua vista apenas por dentro. Que amava a lua? Obsessiva, voltava à pedra. Talvez descobrindo que lhe entrara no sapato. Por que não jogá-la longe de vez? Que amava? Em resposta, mirava-se triunfante no espelho, boca pintada, cabelo penteado, seios empinados, e totalmente assumida em mulher. Vagamente desgostosa triunfo murchando na vistoria do corpo -aqui entre nós, dizia-se, quase indecente na intimidade consigo mesma -aqui entre nós, um tanto passado. Franzia as sobrancelhas, disfarçava a raiva espiando pela janela.
O sol ainda não viera. E sem lua nem sol ela estava sozinha no banheiro. Esta revelação a fez baquear um pouco. Meio tonta com a solidão e a brancura do momento. Trôpega, buscou apoio na extremidade da pia, que respondeu fria e asséptica ao pedido de ajuda. Olhou para a porta, e se então tivesse saído teria escapado. Mas ficou. Ferindo a si mesma e por si mesma sendo ferida. Com o pretexto de lavar as mãos, molhou os pulsos, sem admitir a tontura – que às vezes tinha esses pudores íntimos.
Recuperada, voltou à pergunta. Que amava? Com fricotes de namorada, fingia não querer responder, não querer saber -que amava? Didática, explicou-se: amar, verbo transitivo direto: quem ama, ama alguma coisa. Ou alguém, completou. Analisou-se, voltando à afirmação do início -que era uma mulher e amava: 1)Que era uma mulher; 2)Que amava: a) alguma coisa ou b) alguém. O pronome indefinido colocou-lhe um arrepio definido e melancólico na espinha. Teve que substitui-lo por outro: ninguém. Havia, certo, vagos e avermelhados professores do colégio onde lecionava. Havia vizinhos? e homens? E vizinhos e homens, havia. E principalmente um namorado de adolescência a quem, preguiçosa, esquecera de amar -possibilidade de algum sofrimento relegada em fotografia à última gaveta da escrivaninha. E contudo, amava. Leviana, objetiva, espalhava seu amor sobre os móveis polidos com cuidado, o assoalho encerado, as cortinas lavadas, que sua casa era um brinco. A imagem lembrou-lhe as argolas de ouro há tempos esquecidas. Vou botar hoje, decidiu.
E encarou-se. Implícito no olhar, o pedido de desculpas por permitir-se àquela extravagância. Pedido de desculpas logo transformado em olhar de revolta. Afinal, não tenho o direito de usar o que é meu? Teatral: e por que raios não saio logo deste maldito banheiro? Acrescentou o adjetivo para ver se sentia um pouco de raiva. Mas o banheiro, branco, limpo, com azulejos, sais e sabonetes enfileirados nas prateleiras -o banheiro não era nada odiável. Com seu ódio recusado pesando por dentro, interrogou-se: que-que eu tenho hoje. A pergunta soou sem ponto de interrogação. Respirou fundo e repetiu em voz alta: que-que eu tenho hoje?
Então viu. Antes que tivesse tempo de terminar a pergunta, ela viu. Tentou disfarçar lembrando que seu nome -Irene -era de origem grega e significava "Mensageira da Paz", vira no Almanaque Mundial de Seleções na noite anterior, antes de dormir. Lindo lindo lindo -adjetivou três vezes em lento pânico. Tão lento que não atinou com despir-se inteira do que até então vira para sair nua e cega do banheiro. O pensamento dava voltas devagar, ela julgou ouvir um canto de criança longe. Tão longe que poderia ser também uma canção de ninar. Boba, sorriu. Toda enleada na viscosidade dos pensamentos, exatamente como uma mosca se debatendo bêbada, deliciada e aflita, numa armadilha de mel. Mas os minutos passavam enquanto sua possibilidade de libertação diminuía cada vez mais. Alheia à própria perdição ela afundava, Irene, embevecida. E se não saísse agora, já, exatamente nesta nota deste canto naquele passarinho daquela árvore ali de fora, se não saísse agora estaria perdida. Imóvel, Irene não ouviu o apelo do pássaro. E sem ter outro remédio, relegada a si própria, Irene viu.
Redonda, amarela, tentadora -a espinha brilhava na ponta do nariz. Passado o primeiro espanto, o gesto foi de pudor. Como se sua face exibisse uma obscenidade, um outro órgão sexual ainda mais cabeludo e mais oculto. Como se a quieta presença da espinha violentasse alguma coisa no dia. Mas corrigiu esse primeiro gesto, e contemplou-a novamente. O segundo movimento foi de orgulho. Como nascera de si espinha tão perfeita? Examinou-se conscienciosa da cabeça aos pés, e quando tornou a erguer os olhos o maravilhamento foi ainda maior. Era realmente uma bela espinha. De uma beleza geométrica: exata na circunferência, discreta na cor, formando dois ângulos de quarenta e cinco graus com as aberturas do nariz. Irene lembrou-se de compará-las às outras espinhas de sua vida. Mas aquelas, além de poucas, tinham seu habitat natural em suas costas, lugar inacessível aos olhos. Logo também o deslumbramento desestruturou-se, rolando em indagações pelo rosto abaixo. Como? Quando? Por quê? Na noite anterior, ao lavar o rosto, não vira sequer anúncio da espinha. E hoje, minutos afio recompondo-se, ainda não percebera nada. E seu rosto sempre limpo, prevenindo acontecimentos dessa espécie. E sua idade madura, superando esses problemas adolescentes. Todas as perguntas tinham resposta. Mas a espinha continuava. Alheia às investigações, atenta apenas a seu próprio amadurecer. Teria crescido durante a noite? Seria apenas uma espinha? Seria um ferimento inflamado? Seria -? Novamente Irene amaldiçoou as espinhas de outrora, nascidas sempre nas costas, e, portanto negando-lhe um eventual preparo para enfrentá-las.
Então, esgotadas as dúvidas, as hipóteses, as perguntas; esgotada sua própria resistência, ela caiu no círculo profundo que desde o início evitara. Dentro de si, olhou para trás e viu às suas costas os dias anteriores acumulados. Uma pilha inútil, discos fora de moda, revistas velhas, badulaques. E viu dias agrupando-se em semanas, em meses, em semestres, em anos, em décadas de cima daquela pirâmide quarenta anos a contemplavam. Tentou ver-lhes as faces, curvou-se um pouco, e mais, e mais ainda. Desnecessário esforço. As massas informes não possuíam feições. Não haviam passado por elas as coisas que geram rugas, vincos, sorrisos, expressões. Cheiros não haviam feito vibrar aquelas narinas. Sabores nos atingiam aqueles paladares, imagens passavam incógnitas pelos olhares fixos, sons desfaziam-se em choque e poeira contra ouvidos pétreos, contatos perdiam o sentido àqueles dedos frios. Quarenta monstrengos formados cada um de infinidades de outros a observavam, inertes. Tentou descobrir um vislumbre de ódio nas expressões. Nem isso. Sem solicitações ou expectativas, eles aguardavam. O que, deus, o quê? Pois se amava. Pois se distribuía seu amor por todas as coisas com que convivia. Pois se sofria. Pois se vezenquando chorava sem saber por quê.
Pois se não via a lua. Pois se tinha pena das crianças pobres na escola. Pois se encarara a espinha. Intensa na própria defesa acumulava atenuantes, justificando-se aflita. Contou desculpas nos dez dedos das mãos abertas em frente ao espelho. Não satisfeita, recorreu aos dos pés. Recorreria a outros, se mais tivesse. As desculpas se acumulavam me entende, eu não quis, eu não quero, eu sofro, eu tenho medo, me dá a tua mão, entende, por favor. Eu tenho medo, merda!
Devagarinho, deixou os ombros caírem. Com a mão, afastou da testa os cabelos molhados. O grito ressoara forte no banheiro, ecoando pelos azulejos para calar o pássaro lá fora. O pássaro que havia pouco fora sua possibilidade de salvação. Recusada. Sacudiu a cabeça, furiosamente afastando pensamentos. Que era uma mulher e amava, que era uma mulher e amava, queeraumamulhereamavaqueeraumamulhereamavaqueeraumamulhereamava foi repetindo e repetindo até libertar-se de tudo. Abriu os olhos, encarou-se. Feminina, amorosa, delicada, levou os dois indicadores até o nariz e suavemente espremeu a intrusa. Depois caminhou até a cozinha e servindo-se de chá na xícara rosada olhou com espanto o relógio. -Como é tarde, meu deus! Preciso me apressar! Apressou-se então, a boca cheia de pão com manteiga, ao mesmo tempo em que se imaginava na roda do cafezinho contando: -Imagina, Clotilde, hoje me aconteceu uma coisa tão engraçada!
Mas tão engraçada, repetiu em voz alta no meio da neblina, argolas douradas nas orelhas, a rua vazia. Saiu correndo para pegar o bonde. Sentada, acariciou medrosa a ponta do nariz.
Não ficara nenhum sinal.

Caio Fernando Abreu
"Verbo Transitivo Direto"