Nossa Dívida para com o Selvagem.



"Vivemos sobre os alicerces construídos pelas gerações anteriores e só muito vagamente podemos compreender os penosos e prolongados esforços que custou à humanidade atingir o ponto, não muito elevado afinal de contas, a que chegamos. (...). O volume de conhecimentos novos que uma época ou certamente que um homem podem acrescentar ao fundo comum é pequeno, e seria estupidez ou desonestidade, além de ingratidão, ignorar o todo, valorizando apenas a pequena contribuição que pode ter sido nosso privilégio trazer. (...). Desprezo e ridículo, ou aversão e denúncia, são, com demasiada freqüência, o único reconhecimento concedido ao selvagem e ao seu modo de ser. Não obstante, entre os benfeitores que estamos prontos a louvar agradecidos, muitos, talvez a maioria, foram selvagens. Pois, feitas as contas, nossas semelhanças com o selvagem ainda são mais numerosas do que as nossas diferenças. (...) A reflexão e a pesquisa nos devem demonstrar que temos, para com os nossos predecessores, uma dívida em relação a muita coisa que consideramos como nossa, e que seus erros não eram extravagâncias intencionais ou delírios de insanidade, mas simplesmente hipóteses, que, como tais, se justificavam na época em que foram propostas (...). Afinal de contas, o que chamamos de verdade é apenas a hipótese que se supões funcionar melhor. Portanto, ao exarminarmos as opiniões e práticas de épocas e raças mais rudes, bem faríamos em olhar com tolerância (...) e em conceder-lhes o benefício (...) de que nós mesmos talvez necessitemos algum dia: cum excusatione itaque veteres audiendi sunt. [1]"

- Frazer: O Ramo de Ouro.
(Foto: Minha/ pata da "Preta": esfinge que ladra e morde.)

1 - "Com a mesma indulgência os antigos devem ser ouvidos".

[pausa] Idéias em si.



"Dispenso-a de comparecer na minha idéia de si".
-
Pessoa.
(Foto: Minha-comigo-nela/Chamonix-FR)

Sabe, chegamos àquele lugar onde o silêncio é esquina de mais nada. Ficamos tanto tempo afirmando rotinas e traçando roteiros que não sobrou mais espaço no papel para o improviso. Tinta de caneta, certeza fácil: rua do cansaço, sem número. Sequer me importo de dormir na calçada.

A roleta do cassino de tudo que se passou não traz vencedores: nenhum número coincide com as apostas. Que arrogância isso de achar que está tudo aí, sob as vistas. Que infantilidade isso de querer fechar o livro da vida com promessas. O infinito não cabe nem é circunferência de dedo algum. Na verdade, as mãos devem estar limpas quando se lançam os dados.

"Para sempre" muitas vezes é desculpa de "não consigo". Se este é o exato momento de toda minha vida, eu juro que não entendo essa mania de não-agora: antes fosse ou melhor depois? Bah! Tem gente que brinca com o sério. Cada segundo é uma pergunta. Tic-da batida-tac do melhor a ser feito. Mas não, todo mundo é físico quântico. O tempo virou uma dimensão qualquer, quarta-outra que seja, abrigo da mediocridade. Todavia, vivemos em três e morremos em dois planos: antes em pé do que mal deitado. Este o mais científico de todos os fatos.

Então, no meu hoje em dia não há muito espaço para pretensões. Cada dia que passa eu imagino que diminuis tuas convicções de ontem e te largas em mania de asteróide: ironia, já que o planeta-em-dúvida devia ser eu, o para lá de urano. Todavia, sigo em órbita teimosa, apesar de último, e por mais que a sabedoria atualizadíssima insista em me desqualificar, digo que não me importo: sou qualquer coisa melhor do que "pedra gelada". O resto daquilo que me é predicado deixo para a polêmica da boca-miúda.

Quietismo estético, porque eu realmente não tenho nada a dizer. O que digo, digo para ouvido mouco, outro que não sabe dos bois, quanto mais de nomes. A si, deixo o direito de não comparecer. Na verdade, nova ironia, porque nunca precisamos de tais expedientes: desde que o fim começou, tiraste férias de qualquer extrema unção. Fiquei como no conto do alemão-louco: a carregar cadáver. O pior de tudo estava por mim.

Mas isso é o que se fez daquilo que não se sabe o que era para ter sido. Ou seja, está na categoria do "foi-se". Se te cedi direito, exigi de mim dever: arremessar-me para além de antanho. É... digamos que prefiro mais um "para agora" do que um "para sempre" nos dias que me seguem.

Era isso. Acho que cheguei naquele lugar onde a minha vida é cruzamento com a enorme vontade do melhor. Aprendi a conviver só com o curto-médio em prazo. Longo só os desejos, e esses, diz filosofia antiga, são a causa de todo o sofrimento.

Finalizo tranqüilamente dispensando-me de comparecer também em qualquer idéia de si. Prefiro a calma da periferia.

Aquele abraço.

Além-aquém-daqui.

[Em março de 2007, uma pesquisa de mestrado foi a minha chance de dar o troco, e o vento me levou para o litoral-de-lá, onde tudo, dizem, começou: resolvi conferir meu título de cidadão tardio da velha senhora. As experiências são inúmeras, e eu posso dizer que 4 meses e meio mudaram-me completamente. Por enquanto, vou falar das cidades, já que é esse o nosso tema: verticalidade, locus e gente na calçada. Depois, as sentimentalidades de chão mais duro]


"as construções atuais refletem, fielmente, em sua grande maioria, essa
completa falta de rumo, de raízes... cujo único interesse é documentar,
objetivamente, o incrível grau de imbecilidade a que chegamos, porque, ao lado dela existe, já perfeitamente constituída em seus
elementos fundamentais, (...), toda uma técnica construtiva,
paradoxalmente ainda à espera da sociedade à qual, logicamente,
deverá pertencer".
- Lúcio Costa: Razões da nova arquitetura.
(Foto: Minha; Restauradores/Lisboa)


Primeira Parada: O País-Nariz.

Olha, não é que Lisboa seja chata. Não é isso. Apenas há lá um consenso que o Tejo é via de mão única. Restelo -» Mundo. O inverso só a passeio.

Por isso, sugiro: toda a vez que ouvirem “Portugal”, pensem neste singelo país do tamanho da população de São Paulo e… excluam Lisboa. A pior coisa que pode acontecer para qualquer brasileiro que lá chega com um pingo daquela sensação “vou lá encontrar meus camaradas” ou “sabia que meu avô era português?” é pegar o vôo direto da TAP para a capital do país-nariz de Cabral, aquele ibérico do caraças! Entretanto, se o que te preenche o coração é o sentimento de “sacanagem, eles amansaram as índias antes de mim”, ah, então venha mesmo, e venha a nado se o avião atrasar! Lá é o local perfeito para si! O rico, a feia, o quase bonito, todo mundo tem nada para dizer para você, nem você para elas. Mas antes, apelo para a tua cordialidade natural de bom selvagem: deixemos o esplendor e o silêncio da gente do centro. Garanto que o Tejo é o “mais pequeno” dos lugares do Brasil.

Sim camarada, teu avô não era lisboeta. Digo-te: de todas as pessoas que, ao conversar comigo, conseguiram a proeza de manter a relação “sorriso-frase” com frequência, numa conversa educada, 99.9% delas eram do além-aquém-daqui. Claro, sempre há margem para a surpresa. Mas como sou afeito a exatidões, digo que o 0,01% que falta da minha conversa era um loirinho muito simpático que me abraçou quando me viu com a camisa do Sporting. E isso dentro de um bar brasileiro, o que compromete minha amostragem: ele estaria sendo mais esperto do que legal, ou bêbado?

Eu sei que pareço o primo mal amado neste romance que o Eça e o Camilo ainda estão por escrever, ou que parei antes de 22. Aceito vossa reprimenda. Todavia, explore um outro concelho: Porto, Coimbra, Évora, algum lugar no Algarve, algum lugar no norte, algum lugar português! Chegue de avião, que é o jeito, mas alugue um carro. Bartolomeu Bueno da Silva faria o mesmo.

Arte & Política



“(...) formas que não se apoiassem no chão, rígidas e estáticas, (...) mas que mantivessem os palácios como que suspensos, leves e brancos, nas noites sem fim do planalto.

Formas de surpresa e emoção que, principalmente, alheassem o visitante por instantes que fossem dos problemas difíceis, às vezes invencíveis, que a vida a todos oferece”.

- Oscar Niemeyer – “Forma e função na arquitetura”.

(Foto: Minha)


Brasília é, como tantas cidades do mundo, dona de vários adjetivos: é a cidade planejada, cidade mística, cidade linda. É cidade modelo, cidade de curvas, centro do poder e da (des)política. Cidade palco, cidade refém dos carros e do avanço desordenado. Cidade que rompeu as amarras e os traços no papel: a cidade discursiva. Trajetos, descaminhos e atalhos no desenho ufanista do modernismo apressado que quis colonizar o solo do planalto central. Resposta à prancheta, a resistência do concreto (e também do vidro) da capital do país aos seus desenhistas e planejadores. Cidade rebelde: filha de pais enamorados pelos ideais comunistas e socialistas, a cidade capital da vida do país é atualmente o reverso do sonho. Brasília é, como tantas cidades do mundo, reflexo de dinâmicas humanas, do dialogismo, da dialética das interações entre os espaços e quem realmente de fato se ocupa deles. Brasília queria ser o plano piloto somente. Brasília queria ser a cidade para os do dinheiro. Brasília não vê beleza na pobreza, e se desvia dela na próxima “tesourinha”. Entretanto, existem aqueles que não concordam com Brasília.

Esses, os pobres. Gente em buracos. Gente em carroças cheias de latinha, o cavalo manco, lento. Atrás, o carro apressado. Cidade de carros. Gente? Nunca vi. Só em livros.

Asfalto e concreto. Brasília foi projetada contra a pobreza. Brasília versus Brasil. O viaduto tem calçada curta, que não cabe o corpo. Parada de ônibus de ferro, que o concreto já ficou mole, diferente do coração de quem não se transporta. Ruas, ruas, largas, amplas. Quilômetros de ruas sem um teto. Arborizada, é verdade, mas para passarinho ver. Nada de esquinas, nada de cortes. Tudo limpo, na verdade, tudo às vistas. Uma vez ouvi um dos amigos do niemeyer dizer "os espaços vazios são também decorativos", bem, aqui eles servem bem à estética clínica da cidade vitrine: o farol vermelho-azul vê longe, e encostar-se é o crime. Negro de havaiana em shopping, nunca, nem no natal. Ah sim, muitos shoppings, que esse calor tá de matar não é mesmo?

Todo mundo aqui é europeu. Classe média ALTA, fazendo o favor! Só vou expulsar o reitor quando aparecer no horário nobre, que é a hora que minha mãe está em casa para gravar. Satélites? Disse bem: "AO REDOR", que é para onde exilamos todos os sócrates desdentados, descalçados e desqualquercoisas que não combine com o glamour do novo-piche.

A subversão, a negação que a capital do país aparenta ao seu plano original foi construindo-se por demanda das dinâmicas que estavam além (aquém?) das utopias: cidade centro do poder. Brasília precisava parecer limpa, “branca”, e para isso, desviou do seu centro o roto, o maltrapilho, o sujo. Brasília era um sonho e devia continuar a parecer um sonho. Todavia, a cidade encontrou outras maneiras de aparecer: a pobreza presente, hora camuflada, hora frente aos olhos, incômoda. Luta entre a realidade de um país subdesenvolvido e os jeitinhos tentados para “alhear o visitante”: o Brasil se inseriu em Brasília. Brasília versus o humano, o brasileiro em Brasília. E agora, com licença, que tenho que ligar o ar condicionado.