[Carta Inglesa]


Meu caro jovem.


Recebi sua carta na qual o medo da casa vazia se misturava com a certeza do que não sabes. Li cada linha de teu edifício do desejo de sempre entrevendo paredes descascadas, que apesar da tintura do momento, sangram ainda tijolos antigos.

Compadeço-me de tua alegria. Sei que neste momento cravas em mim o punhal de aço novo e me atiras as notícias do dia. Mas como compactuar com a euforia? Não há elegância na incoerência, nem mesmo retidão no receio. Falas-me de tempos modernos, mas vejo-te encastelado em antigos horrores, vivendo em costumes de planície, apesar de te achares bandeira fincada em algum daqueles altos montes da Indochina. Dizes-me que tudo mudou, mas por mais que estejamos a viver em dias de caprichos, consiguiras adicionar um covado à tua estatura com o eloqüência melíflua da tua conversa? Por isso, peço-te que me permita minha tristeza em te veres assim, tão a braços dados com toda essa literatura do continente. O métier de amigo tem escritório na Rua da Razão, com números: quantas vezes já te vi assim, quantas vezes disseste-me "ah, desta vez...", e quantas vezes recebi logo em seguida a missiva ligeira dos de coração partido? Diminuis-me quando me creditas o ofício de recolhedor de cacos em peito e ao mesmo tempo me negas acesso ao teu ouvido, que eu mal te lembre, é orifício-túnel da cabeça.

Por todas as vias possíveis e imaginadas (principalmente estas) colocaste em prática o teu velho plano novo de conseguires o que ninguém quer de fato. Se vivêssemos de aparências, bastava a vida ser um quadro exposto no museu do universo, cabendo a Deus o papel de dândi balzaquiano. A tua Paris não merece os habitantes que tem, tu bem o sabes. Mas mesmo assim, fazes da rotina teu percurso. Demoras-te em manias de outrora, e mesmo assim esperas que algo de bom te aconteça, como ator do Opera que ansiosamente depende da escrita alheia. Auto-ostracismo é o charme de tua preguiça, e eu, preso que estou em antigos conluios, lembro-te a latitude de outra poesia que nos informa que, para se viver, há de se acostumar com as pancadas!

Desculpai-me, meu caro, pelas ferroadas desta pena, mas certo é que afeto se mistura em tinta, mesmo naquela menos provida da cor do incentivo. Não podia ser diferente: eu vivo em ilha, e sou vítima do positivismo dos grandes pescadores. Os grandes feitos são construídos, e não meros acontecimentos. A rede é mais cômoda que a vara, mas é na solidão da conquista que se dá valor ao que até então não se tinha. Para mim, não vejo isso de se perder para se ganhar, mas sim, de se trabalhar para se ter. Dignidade diluída é medo de assumir a responsabilidade que a grandeza trás consigo.

Por isso, remeto junto a esta não a minha benção, mas o meu senão. Segues cego. Não adianta preencheres teus buracos com boas intenções. Reconheceres o que não és é o projeto do que gostarias que fosses. Cada coisa ao seu tempo, e sempre há tempo para cada coisa. Permita-te a reflexão e aproveites os momentos para decorar teus vazios, ausentando-te da pressa que o susto da falta nos causa.

Deixo-te minha vontade do teu melhor, e espero um dia não precisar mais ser esse teu amigo. Digo isso não pelo aborrecimento, mas sim pelo prazer de tua plenitude. Espero que essa economia de selos ocasionada pela falta do aborrecido contribuam para a poupança do que um dia virá a ser a riqueza do em ti duradouro.


Daquele que se orgulha de poder ser o seu
Grande Amigo.


Ps: Estamos te aguardando. Traga sol, para combater janeiro.