Fatos a se Consumar



tá certo papai, eu sei disso. sei que em cada esquina tem alguém te oferecendo uma muda de roupa suja tua para tu lavares, que salto alto e ladeira não combina. tô sabendo. tá dito também que a gente é confuso dessa confusão que não soma um com um com medo de dar três, que dizer do quatro! tá falado. aprecio mas me reservo em direito e se desconfio é porque eu nunca vi nada comigo começar que não fosse de cabeça para baixo. certo na vida só tenho a minha hora de morrer: que vai ser numa manhã nada tranqüila de um sábado de março, porque todo mundo vai se espantar menos eu. 

sim, eu liguei no telemóvel da gaja lá e ela ficou de me falar o que tava errado. fui mas voltei chateado, obrigado a rasgar a cuíca porque tudo que eu dizia terminava com "ô pá, és parvo!" fala sério rei, quer dizer que a moda agora é ser normal? todo mundo quer a sorte de um amor tranqüilo, desses de domingo no parque e cachorro com fralda. desses de final de semana no algavarve com foto editada, sépia, para dizer pros amigos que "foi assim desde sempre". tá certo... exagerado né? tá bom...  no dia que tédio encher copo d'água vai ter gente me ligando para ser salva-vida da sede de quem não me esqueceu. e aí cê vai jurar que eu faço troça.

sempre fui azarado. nunca ganhei rifa, prêmio, sorteio nem beijo de boca que não me mordesse depois. nunca fiquei pra amigo, nunca tive pinta de herdeiro de comida requentada e sou sempre capa da revista. passa o dia, o mês e o ano. passa até década, que daqui a pouco vou me dar o luxo de fazer bodas de sacanagem que fiz no passado. fala mal, fala bem, fala mal de novo, aí lembra, e só fala bem. eu fico mal, fico bem, faço as pazes, faços as vezes, mas sempre faço bem, lembra? sou o pior, sou o melhor. para a amiga eu não presto, pro amigo, exemplo, e pro namorado sou história, coisa que já passou benhê, fica tranqüilo! fique sim sócio, comigo ao menos pode ficar...

e aí é tarde na quinta, você chega e puxa conversa. acha engraçado eu não dar a mínima idéia para toda essa conversa que é o contrário do que eu digo e acha estranho eu ter saudade da Amélia, a que era mulher de verdade. ah parceiro, o peito dói né? claro que sim! mas fazer o que, se toma uns copos e a vida segue. meio-dia aparece um outro amor, menor, maior, e a gente se vê de novo enrolado com meia-dúzia de coisa para dizer que não sabe ao certo o que é ainda. o problema? o problema é a morena pai, não pára de nascer no mundo! todo dia tem gente fazendo morena, morena aqui, morena ali... e aí? já me conformei e minha reza é a reza pro santo para que não pare de aparecer dona da minha vida. dizem que a de cabelo preto e cintura fina é para casar, oxalá! Todavia e até lá a gente se reúne ali no bairro para cantar a beleza de quem passou, de quem vai passar... e claro, daquela que um dia fica sem querer ficar mas acaba te acabando!

sim, já se viu o que vou te pedir: não me rogue praga! camarada que você é, te peço que me deixe aqui com meus i's sem pingo, meu dia de domingo e a cerveja. não me peça certeza, não agora, porque não me falta vontade dela, mas ainda não me apareceu aquela, minha Dom Pedro I que do alto da sacada vai me tornar terra independente dos favores da baixa. Bonito né, mas acredite, nada disso vem fácil, nem é tranqüilo. Gostar é ofício de encrenqueiro, paixão é chave de cadeia e amor e a sentença de passar o resto da tua vida procurando sentido para as coisas. Feijão, conta e toalha molhada, e o gostoso de tudo isso é não ter ordem alguma, para tudo virar caldo pra panela.

eu sou azarado, encrencado, mal resolvido, mal querido, nada certo, improvável e caótico, entretanto, tenho direito à minha melodia. vou ficando por aqui e te deixo com esse meio dedo de mim, morena, que já te dei assunto para pensar a vida inteira, ie. esta semana.

no mais, a boca está aqui: só falta a loucura. eu quero ver!

smack!

Pax Lusitana



You know what they say: o mundo é um quarto de hotel no Rossio. Roda a bola e eis que toda a gente vem dar aqui a meio caminho da Baixa, ouvindo o Chiado dos carros lá embaixo e do povo giro que acha fixe fazer barulho de manhã cedinho, inferno de quem sobe a colina e fica até mais tarde tomando vinho no Alto do Bairro, o monte dessa preguiça criativa de quem tem alguns escudos, antiga moeda das presentes imperiais.

You know what they say, e eu não podia ser diferente. Gosto de não acordar cedo e olhar o Rio de noite. Gosto de pensar que mereço algumas férias depois dela, dela e da outra. Aqui eu sinto o gosto, pela primeira vez, de escrever algo que não seja o passado. Sinto essa alegria de viver em um tempo que é tão antigo que nada disso existia: a insustentável leveza do paralepípedo que se desmancha no ar. A mesa n' A Brasileira, do lado do Fernando, com quem converso todos os dias, não todos que tem dias que não aguento o jeito londrino dele, que gosta de reclamar do tempo das coisas, da chuva e dos pombos que têm essa eterna mania de fazer piada de gente que fica parada no mesmo lugar. 

You know what they say sobre os bons costumes. Alguns momentos são de uma simplicidade tão crua que faz o homem ajoelhar-se sobre as calças de linho: um cálice de vinho da madeira é toda a doçura do mundo em uma nota de 5 euros, a mais pequena delas por sinal. A mão corre pro bolso do terno inglês, o dedo ajeita o óculos de armação italiana depois de acertar a volta do bigode, e a boca é o começo do túmulo das uvas que alguém colheu para colorir as primaveras da Rua Garret, onde todas as verdades se dissolvem nos taninos de uma tarde tranqüila.

You know what they say: Camões é o porteiro do turno da noite. Fica ali em sua praça, ao pé das travessas estreitas e das tascas. Um pé sucede o outro nas marchas pelas calçadas: aqui a bohemia requer preparo físico. E os atletas da boa mesa se esbarram sem se tocar, respirando fundo frente a escolha do dia: bacalhau ou polvo a lagareiro? Hoje vou D'ouro ou algo mais ousado, que sabe um frutado do Algarve? Sentados, somos todos oráculos, antítese da Esfinge: ao primeiro toque revelamos alegremente nossos segredos. A boca fala algo do estômago educado, o hálito é medido em cifras invejáveis. Ninguém é estrangeiro, ninguém é local e todos são senhores. Nunca temos opiniões, e sempre sugestões.

You know what they say a respeito da necessária gratidão a isso tudo. Sim, sou, tanto e muito. Só não me peça para me sentir culpado porque experimento a chance de ter paz em muitos anos. Porque depois de uma vida de não's, agora sei o gosto do sim. Não me afeta essa afetada crueldade pseudo-calvinista dos que carregam a peçonha por baixo do manto, ao mesmo tempo que saúdam César, como que em júbilo antecipado dos idos. Seguimos firmes, mão no leme e olho na terra, sempre às vistas. Pedimos apenas licença para sacudir a poeira e rir desse riso leve de quem finalmente cruzou o cabo da boa esperança.

You know what they say, e hedonismo é a derrapada na curva do aprender a gostar de si mesmo. Eu acho que tamanha preocupação é desconhecimento do autor da assinatura das faturas. A distância e a tranquilidade de bons dias cicatrizam feridas, trazem novas luzes para velhos candeeiros e inclusive têm o poder de te deixar mais humilde. Se hoje eu não ligo para ti e para ti, e não escrevo para ti, é porque sou pai de uma nova calma de espírito que só o estar longe do outro lado de tudo me ensinou. Se hoje hasteio alto minha bandeira e busco novos portos é porque tenho do lado de lá de quem ficou a amizade sincera e o incentivo dos que acreditam em mim. Por isso, abençoem minha caravela e rezem por minha viagem. Tudo isso vai voltar em dobro para você, e você e você, na forma de alguém que sempre carregará o respeito e a gratidão por tudo, dentro de si e direcionado para vós.

Por enquanto eu tenho meu escritório na Rua da Barroca, vários números. Estou sempre por lá, abraçado com pessoas, frutos do mar, da parreira e cervejas. Dá para me ouvir rindo lá do Cais, Sodré diria. Mais uma vez, obrigado por tudo, mas por favor, licença que quero ser feliz.

You know what they say, Deus fecha uma porta para abrir uma janela, e eu sou testemunha disso: quando fecha o Portas Largas e acaba o samba, a noite continua no Janelas do Atalaia. 


Um beijo para todas, e tenham uma excelente vida.