Solvente Universal




(De uma coisa eu me orgulho, de justamente ter algo a dizer do que menos gosto em mim)

(Há quem goste de partilhar tudo. Há quem aposte que promiscuidade é só do sexo para dentro, da boca para fora é conversa. Um dos maiores erros que cometi foi ter confiado a quem não me fia aquilo que tenho de mais precioso: meu ontem. Lembro-me de ter sentado em bancos, mesas, de ter me encostado na parede para descansar da amargura do que vivi, e esvaziei esse cálice em ouvidos sujos da vontade de algo estranho. Fui leviano com o punhal cravado, e fazia dele varal para a roupa velha enquanto imaginava que assim o arrancava de mim. Confiei em ti, minha amiga, disse o que disse para ti meu amigo, e o que vi ser feito disso tudo? Fui assunto de boteco (como disse a grande escritora em gestação), fui intriga da opocontradição, ainda mais quando me vi no centro de oportunidades novas, e por mais que quisesse puxar todos para perto de mim, quanto mais quis dividir, mais vi a celeuma se instalar. RACCA: small talk com o dos outros é o teu refresco)

("Aqui se faz, aqui se paga" - Jó, que em inglês quer dizer "trabalho", que é diferente de "ocupação" do verbo, dar conta da vida alheia. Quem senão eu o responsável por isso tudo? Por isso tenho lá minha dificuldade em não gostar, apesar de experimentar descontentamento. Não digo o contrário de amar, porque em tempos difíceis todo palavrão é muito. Já há desgraça por demais solta pela Medina, ou Belfast, para quem já andou de trem. Digo que não aprovo, não concordo, mas desço na parada do Respeito, forma de homenagem aos mártires na guerra contra o ostracismo orientado por tudo que nos parece beau-EN-coup facile)

(Si amigo, mea culpa, mea maxima culpa. Mas isso não te dava o direito de fazer o que fez. A razão é só o outro nome do me-acho-certo. Se esqueci de sacrificar aos deuses do não-dito-apesar-de-bem-sentido, e de ser grato pela oportunidade de conhecer melhor o "gênero humano" [forma de categorização; onde se separa pelo sexo, sempre], tudo que vi, ouvi... e melhor, tudo que NÃO vi e NÃO ouvi foram-me tão instrutivos como tudo que se insere no retorno de Saturno, esse deus que sempre me espera na saída para me cobrar minha consumação. Não que esteja em pé de guerra com as mudanças, pelo contário, sou do partido das novas convicções, mas tenho lá meu direito a indagar dos "anéis e seus quilates" que a mão que me estapeia carrega)

(Por isso, a minha fração nisso tudo eu dejá deixo manifesto: eqüilibrar minha liquidez. Abertamente acho algumas ondas pós-modernas como a maquiagem de um dadaísmo totalmente desproposital. Todavia, devo assumir que me enamorei com algumas delas. Amor não se dosa, nem é servido em copo americano. Na verdade, tudo que daí vem é corrosivo, quando o assunto é sentimentos sinceros. Ok, assumo minha parte: falei e fiz demais. Disse do que sentia, comentei do que não entendia para vous [nova língua, novas regras: polidez ou, no nosso caso, desconhecimento] outros, senhores dos pedaços mal contados da minha vida. Fiz, e por isso, Jó. Todavia, está feito, resta agora confiar: enquanto escrevo, fico da minha janela a mirar o mar, esperando que passe a minha baleia)

(Isso é de mim. E de ti, o que esperar? Eu já falei e repito que dos outros só desejo o para além da conjugação: EU, a primeira pessoa, singular. A superação desses estados convencionais da linguagem deve vir acompanhada do desejo do correto: Se EU faço, e TU, o que fizeste? Meditação mes algo-próximo de amies é faca de dois legumes: tangerina sempre marca os dedos de quem a come. Vocês me deram o ensejo, que espero retribuir com suco da fruta. PARA vocês deixo muita coisa, a mais importante delas, minha sinceridade. Sei que não é muito quando se quer tudo e se espera tudo. Todavia, peço licença para a ingenuidade e sigo andando nesse ofício de Bartolomeu Bueno de mim mesmo. Certeza é que não paro, muito menos para chupar uma manga)

(Obrigado, obrigado e obrigado. Por tudo e por nada. Pelo ouvido e pela fofoca. Por me ensinar a cultuar o silêncio sem deixar de amar os dois dedos de prosa que o cotidiano nos pede. É no espírito da boa conversa que eu abro a porta de casa, que dá para a rua, diz Gilberto, lugar do público. Tanta coisa boa aí fora, tanto cheiro, tanto som e tanta rima que até me anima a verso novo. Eu nunca fui de ter caixa postal, mas acredito na individualidade. Quer falar? Fale! Quer reclamar? Reclame! Achou ruim? Que pena. Se isso ainda faz parte de ti, lembro-te que quem acompanha João-de-Barro vira ajudante de pedreiro. Já meu ofício é o de vos querer bem, sempre!)

(Erramos todos, vamos continuar errando. Machucar-se faz parte do contato com o "humano" [categorização; ser pensante, nada sinto]. Mas podemos começar a fazer diferente, n'est pas? Podíamos começar estudando a alteridade, outro nome para ali é o teu começo. Podíamos começar nos calando, espaço para o ouvido. Enfim, podemos infinidade de coisas boas. Das ruins? Eu já tenho o suficiente. Antes só do que do mal acompanhado. Continuo querendo teu bem)

("O amor cobre a multidão de pecados" - Jesus, que em latim é a receita do Solvente Universal: excelente dose de carinho, uma mão cheia de compreensão e otimismo a gosto. Continuo querendo o vosso bem, o de todos, sempre!)

(Quem pensa o contrário, que continue atirando as pedras. Quem diz "cobrir", não diz só "apagar", diz também "telhado")

(Voilá, c'est tout!)

[Carta Cubana]



Querida amiga.

Com o tempo aprendo a me contentar com pouco. Talvez a economia do que me falta ensinou-me a andar de cinto apertado, calça atada à altura do coração. Talvez seja a minha miopia que me proporciona essa alegria impressionista de ver traço largo em tela tua. De qualquer maneira fui assaltado por sentimentos contrários à história que nos contaram e que aprendemos a aceitar, sentença das fúrias. Vi-me novamente com aquela coragem dos incautos-com-coração, quase dormente de bem-te-querer, divagando alto na esperança de alguma musa-em-comum passar a limpo em letras escarlates, a cor do reconhecimento sincero, as palavras que invandiam o forte gelado que tranquei tudo que dizia respeito a qualquer coisa que teimasse em ser nós-dois.

Sabe amiga (digo assim, porque a regra culta manda: estrangeirismos), é bom acordar de longo sono, pois quem diz acorda diz estou de volta. Todavia, é difícil abrir mão de sonhos. Lembro que costumavas reclamar de minha preguiça, de ver-me deitado qual peixe cansado na rede quando tínhamos uma tarde toda que não conhecíamos lá fora a derrubar delícias do jambeiro, árvore do nosso bom pecado. Entretanto, não sabias tu que ao me trancar no quarto ao lado da biblioteca (fonte de nosso saber) eu estava tecendo lembranças, entrelaçando momentos e fiando tua ali-presença para que, em futuro sem paredes, eu pudesse ter onde me encostar e me abrigar do sol de meio dia de toda essa estupidez que algum idiota chama de "é a vida, fazer o que?".

Hoje possuo um manto que é a constelação da alegria que semeaste em meu infinito. Ele está velho e gasto, como aquela tua estrelinha azul, e como ela, ele hoje é também o testemunho brilhante da minha também imensurável tristeza. É amiga, sou triste como um personagem de Hemingway. Não sofro como na televisão, pois eu bem queria essas pausas para comerciais: sinto toda uma enciclopédia que pede constante revisões. O que nos passou é agora minha história clássica, tendo inclusive tons messiânicos: minha vida, triste ironia, se separa também em A.C. e D.C.

A pior dor, acho que já te disse isso, é a dor do não vivido. Não tem coisa pior que acordar em um tempo verbal que você não acha seu. Tudo o que resta na frase desse viver acaba sendo objeto do sujeito, que vira colecionador de momentos: não há predicados nem aqueles adjetivos que te fazem crer na redenção pela semântica. É tudo gramática de comportamento. "Não, você não pode"; "Não há mais nada o que se dizer"; "Fazer o que, é a vida!". Aos poucos você se torna um autômato e entra no frenesi da tabulação moderna, e assim vai vivendo, pouco fazendo-o-quê de concreto.

Apesar disso tudo, foi engraçado a maneira como eu me vi em tua vida agora: não que esperasse algum "Agradecimento", mas fiquei surpreso em ser nota de rodapé obrigatória. Nunca imaginei que seria grato à ABNT! Digo isso de coração, porque é bom saber que sou legenda de algo grande vindo de ti, mesmo que seja para constar oficialmente. Por isso, peço que permita este arrebate de ver meu nome inteiro, lembrado e em algo que seja de 2008!

Eu teria medo do exagero se não lembrasse a nossa leitura em comum: afinal, ambos devemos a ele a nossa profissão. Foi bom recordar isso tudo, das nossas conversas e conclusões, do nosso sociologismo recheado de humanismo juvenil, que tanto nos fez bem. Foi bom ver aquelas fotos de tantos anos atrás, onde nossa indignação se misturava ao lixo alheio, tesouro para tantos. Eu pensava que não lembrava mais disso. Na verdade, parte da minha programação neuro-linguística (outra palavra para "Coração, aquele embusteiro") foi negar tudo entre o A e o D do C. Para isso, deixei de ser várias coisas: voltei para o castelo da teoria, faço piada com minhas camisas vermelhas, nunca mais vi um filme, não leio nada que não seja antigo e clássico e fui no teatro porque minha mãe comprou os ingressos!

Confesso para ti que algo melhorei sim. Tenho ainda alguma vontade acadêmica, que na verdade uso como band-aid para o enfado que sinto de não ter com quem mais poder falar de tudo. Antes que você me sugira algo, juro que já tentei andar com aquela sacola transparente da Livraria da UnB, exibindo minha última aquisição do Joyce: não funciona amiga, infelizmente. Hoje sou como Ricardo III ou qualquer bom personagem inglês: vivo de monólogos. Ao risco de parecer prepotente, digo-te que quase morro desse tédio de encher prateleira vazia. Sinto falta do desafio, tanto que queria lembrar quem terminou com o IRA maior, eu ou você! Acho que foi você, muito por culpa de ter viajado naquele verão que fiquei aqui tendo que repetir IE enquanto você via o Axl Rose: não conseguia me concentrar procurando-te na TV e tentando lidar com toda aquela saudade avassaladora de mês e pouco que nos conhecíamos.

Em suma, estou alegre por ti e pelas notícias de tuas conquistas. E por isso, experimento o revesso do que vinha sentido, e me reconcilio, mesmo que sozinho, com todo esse passado maravilhoso que tenho como presente para um futuro que nos sei melhores. Não sei nem acho certo saber o que se passa das bandas de lá do jambeiro, todavia, TUDO o que li me deixou feliz. Sei-me também ainda prenhe de defeitos a serem gestados e paridos, mas isso não me impede de repelir o rancor e o seu hálito de conversa velha. Se viver é aprender, eu vivo para descobrir formas novas de te dizer todos os dias que não há maneira deu ser mais grato do que já sou. Da poesia a emails desaforados, entre lembranças e ameaças, algo teima, e esse algo é o obrigado que se carrega na boca, dono do coração.

Agradeço a lembrança e espero que ela tenha vindo da atmosfera do que bem fizemos: ajudar a construir o "sociólogo" um no outro. É sempre uma experiência muito boa para mim saber que você mantém seus ideiais bem erguidos, vela dessa embarcação que um dia ainda vai te levar a portos-mais-que-seguros.

No mais, sucesso

Do seu insistente

Amigo.