[Carta Cubana]



Querida amiga.

Com o tempo aprendo a me contentar com pouco. Talvez a economia do que me falta ensinou-me a andar de cinto apertado, calça atada à altura do coração. Talvez seja a minha miopia que me proporciona essa alegria impressionista de ver traço largo em tela tua. De qualquer maneira fui assaltado por sentimentos contrários à história que nos contaram e que aprendemos a aceitar, sentença das fúrias. Vi-me novamente com aquela coragem dos incautos-com-coração, quase dormente de bem-te-querer, divagando alto na esperança de alguma musa-em-comum passar a limpo em letras escarlates, a cor do reconhecimento sincero, as palavras que invandiam o forte gelado que tranquei tudo que dizia respeito a qualquer coisa que teimasse em ser nós-dois.

Sabe amiga (digo assim, porque a regra culta manda: estrangeirismos), é bom acordar de longo sono, pois quem diz acorda diz estou de volta. Todavia, é difícil abrir mão de sonhos. Lembro que costumavas reclamar de minha preguiça, de ver-me deitado qual peixe cansado na rede quando tínhamos uma tarde toda que não conhecíamos lá fora a derrubar delícias do jambeiro, árvore do nosso bom pecado. Entretanto, não sabias tu que ao me trancar no quarto ao lado da biblioteca (fonte de nosso saber) eu estava tecendo lembranças, entrelaçando momentos e fiando tua ali-presença para que, em futuro sem paredes, eu pudesse ter onde me encostar e me abrigar do sol de meio dia de toda essa estupidez que algum idiota chama de "é a vida, fazer o que?".

Hoje possuo um manto que é a constelação da alegria que semeaste em meu infinito. Ele está velho e gasto, como aquela tua estrelinha azul, e como ela, ele hoje é também o testemunho brilhante da minha também imensurável tristeza. É amiga, sou triste como um personagem de Hemingway. Não sofro como na televisão, pois eu bem queria essas pausas para comerciais: sinto toda uma enciclopédia que pede constante revisões. O que nos passou é agora minha história clássica, tendo inclusive tons messiânicos: minha vida, triste ironia, se separa também em A.C. e D.C.

A pior dor, acho que já te disse isso, é a dor do não vivido. Não tem coisa pior que acordar em um tempo verbal que você não acha seu. Tudo o que resta na frase desse viver acaba sendo objeto do sujeito, que vira colecionador de momentos: não há predicados nem aqueles adjetivos que te fazem crer na redenção pela semântica. É tudo gramática de comportamento. "Não, você não pode"; "Não há mais nada o que se dizer"; "Fazer o que, é a vida!". Aos poucos você se torna um autômato e entra no frenesi da tabulação moderna, e assim vai vivendo, pouco fazendo-o-quê de concreto.

Apesar disso tudo, foi engraçado a maneira como eu me vi em tua vida agora: não que esperasse algum "Agradecimento", mas fiquei surpreso em ser nota de rodapé obrigatória. Nunca imaginei que seria grato à ABNT! Digo isso de coração, porque é bom saber que sou legenda de algo grande vindo de ti, mesmo que seja para constar oficialmente. Por isso, peço que permita este arrebate de ver meu nome inteiro, lembrado e em algo que seja de 2008!

Eu teria medo do exagero se não lembrasse a nossa leitura em comum: afinal, ambos devemos a ele a nossa profissão. Foi bom recordar isso tudo, das nossas conversas e conclusões, do nosso sociologismo recheado de humanismo juvenil, que tanto nos fez bem. Foi bom ver aquelas fotos de tantos anos atrás, onde nossa indignação se misturava ao lixo alheio, tesouro para tantos. Eu pensava que não lembrava mais disso. Na verdade, parte da minha programação neuro-linguística (outra palavra para "Coração, aquele embusteiro") foi negar tudo entre o A e o D do C. Para isso, deixei de ser várias coisas: voltei para o castelo da teoria, faço piada com minhas camisas vermelhas, nunca mais vi um filme, não leio nada que não seja antigo e clássico e fui no teatro porque minha mãe comprou os ingressos!

Confesso para ti que algo melhorei sim. Tenho ainda alguma vontade acadêmica, que na verdade uso como band-aid para o enfado que sinto de não ter com quem mais poder falar de tudo. Antes que você me sugira algo, juro que já tentei andar com aquela sacola transparente da Livraria da UnB, exibindo minha última aquisição do Joyce: não funciona amiga, infelizmente. Hoje sou como Ricardo III ou qualquer bom personagem inglês: vivo de monólogos. Ao risco de parecer prepotente, digo-te que quase morro desse tédio de encher prateleira vazia. Sinto falta do desafio, tanto que queria lembrar quem terminou com o IRA maior, eu ou você! Acho que foi você, muito por culpa de ter viajado naquele verão que fiquei aqui tendo que repetir IE enquanto você via o Axl Rose: não conseguia me concentrar procurando-te na TV e tentando lidar com toda aquela saudade avassaladora de mês e pouco que nos conhecíamos.

Em suma, estou alegre por ti e pelas notícias de tuas conquistas. E por isso, experimento o revesso do que vinha sentido, e me reconcilio, mesmo que sozinho, com todo esse passado maravilhoso que tenho como presente para um futuro que nos sei melhores. Não sei nem acho certo saber o que se passa das bandas de lá do jambeiro, todavia, TUDO o que li me deixou feliz. Sei-me também ainda prenhe de defeitos a serem gestados e paridos, mas isso não me impede de repelir o rancor e o seu hálito de conversa velha. Se viver é aprender, eu vivo para descobrir formas novas de te dizer todos os dias que não há maneira deu ser mais grato do que já sou. Da poesia a emails desaforados, entre lembranças e ameaças, algo teima, e esse algo é o obrigado que se carrega na boca, dono do coração.

Agradeço a lembrança e espero que ela tenha vindo da atmosfera do que bem fizemos: ajudar a construir o "sociólogo" um no outro. É sempre uma experiência muito boa para mim saber que você mantém seus ideiais bem erguidos, vela dessa embarcação que um dia ainda vai te levar a portos-mais-que-seguros.

No mais, sucesso

Do seu insistente

Amigo.

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