A Mulher do Mercador do Rio: Uma Carta

No tempo em que meu cabelo caía reto sobre minha testa,
Eu brincava ao pé do portão da frente, colhendo flores,
Vínheis então montado em pernas de bambu, brincando de cavalo
Ou caminháveis em torno do meu assento, brincando com ameixas
azuis.

Assim íamos vivendo na aldeia de Chokan:
Dois pequeninos seres, sem rancor nem suspeita.

Aos catorze anos desposei Meu Senhor, Vós.
Rir é que nunca pude, pois sou tímida.
Baixando a cabeça, contemplava a parede.
Ao chamarem por mim - mil vezes - nunca olhei para trás.

Aos quinze parei de fingir-me zangada
E desejei que meu pó se misturasse ao vosso
Para sempre e para sempre e para sempre.
Para quê haveria de subir ao mirante?

Aos dezesseis viajastes
Fostes para a longíqua Ku-to-yen, à beira do rio dos remoinhos,
Cinco meses já vão que estais ausente.
Doloroso é o barulho dos macacos lá em cima.
Arrastastes os pés quando partistes.
Ao pé do portão, agora, cresceu musgo, diversas espécies de musgo,
Enraizados demais para que possa arrancá-los!
As folhas caem cedo este ano, com o vento.
As borboletas aos pares já estão amarelas de agosto
Por cima da grama no jardim do poente.
Elas me magoam. Estou ficando velha.

Se voltardes pelos estreitos do rio Kiang.
Mandai-me dizer a tempo
E viajarei o mais longe que possa ao vosso encontro
Pelo menos até à altura
de Cho-fu-sa.


Ezra Pound.

[Pé-de-Flor: uma carta]


Querida amiga:


Já faz algum tempo que não te escrevo. O motivo de meu silêncio é o mesmo do teu: a lama do quintal de nossas travessuras sempre manchava o papel. Também, como te via constantemente, não enxergava o motivo (entre outras coisas) para te escrever. Ficava assim nesse silêncio de cotidiano, onde a mão respondia mecanicamente e o coração tentava adivinhar o que não era dito.

De algum tempo para cá tudo mudou, inclusive você: fostes morar para lá de Chokan. Não tive mais como vivenciar o prazer (secreto) que tua companhia me trazia todos os dias, mas tentei resistir delegando ao meu cavalo o ofício de trazer o vento: furiosamente triste andei pelos campos de para-lá-da-aldeia, chicoteando o lombo que me transportava, porque o passo lento era o sinônimo do odor agradável, cheiro que a brisa suave gravou como teu nome, que é um nome de flor, para quem não sabe.

E por isso minha amiga, que ao voltar de lá para onde não quero ir sem ti, experimentei essa dor que só pode ser a morte, visto que não tenho outro nome para dar para coisa que corta que nem espada nada afiada. Eu te procurei e disseram: too long a sacrifice can make a stone of the heart. Duvidei. Não você, não ela, pois para quem não sabe, ela tem nome de flor e da pedra ela só conhece a terra, fonte da pétala, do orvalho e do perfume que senti quando cheguei em casa vindo de para lá da aldeia, casa do chão. Eu a conheço antes de portão existir, quando tudo era cerca baixa. A vi em beleza de térreo, porque a escada nada serve para ela, só para mim, que sou mais baixo. Duvido. Não digam tais bobagens, retruquei. E desde então, parti também de Chokan, porque não me merece um lar que me conta tais mentiras de inverno quando me sei a andar em primaveras de jardim sempre florido.

Montei meu cavalo, o mesmo que selaste três anos atrás quando me disses: "É guerra sim, porque é luta, mas dura pouco porque ferro é feito de carne". Montei ele e fui para nunca mais voltar para esse lugar. Faz pouco tempo que parti, e no começo fiquei sem saber por onde seguir. Mas aí lembrei teu nome, que para quem não te sabe, é apenas um nome de flor, e tudo ficou claro para mim. Fiz do rio meu guia, e da água peguei emprestado a certeza de matar tua sede, todos os dias.

Foi quando naquela segunda-feira, que é o começo da semana para os que não desistem, ao longe eu te avistei: estavas com o mesmo vestido da véspera de 7,2 vezes 5 meses atrás, quando me disseste "Vais porque tens que, fico porque sou parte". A euforia teria assaltado meu coração se antes ele não tivesse sido tomado pela fé presente de te encontrar ali no caminho para algo melhor. Pensei em correr para ti, mas uma chegada muito apressada podia te sujar com a poeira levantada do caminho passado. Resolvi moderar o passo e te seguir como o cão amigo que segue o ronin: atrás, porém, alerta. De mais longe podia reparar em cada detalhe teu, porque meu olho não só te via, mas te via em presença na paisagem que te rodeava. Sei das tuas lágrimas, contei cada uma delas como contei cada noite que pensavas dormir só. Procurei fazer o silêncio dos que confiam, mas infelizmente, não pude conter as batidas que me vão no peito, a fanfarra que se instalou à tua mirada e que alguns anatomistas chamam de "coração".

E por isso que hojes acordas e encontras ao teu pé essa carta: sei que não conseguiste conciliar o sono por causa da melodia que a caixa de amar do meu peito insistiu em tocar a noite toda. Aceite o tudo dito como um enorme pedido de desculpas. Não queria atrapalhar o teu já escasso sono, mas entenda que é como eu respondo à tua presença. Fique certa também que estou aqui, em algum lugar dessa floresta que é grande demais para ti agora, e que te seguirei até Ku-to-yen ou para qualquer outro lugar que seja desde que seja teu. Um lugar que possas novamente erguer uma casa sem portão nem escada. Uma casa aberta como tua já provada enorme capacidade de amar. Só numa casa assim, pode-se plantar e esperar que germine o teu nome, que para quem não sabe, é sim uma flor, mas do tipo especial que só germina à beira de rio, e que não responde a pretensões de água-parada.

Cho-fu-sa não, que chega disso de metade. Já que é para fazer, façamos inteiro. Cavalgo ao teu lado, minha doce amiga. Ao menor sinal de cansaço teu, desço eu. Erguerei-te com meu braço cheio de fibras e sentarás junto a este teu velho amigo. E sem a necessidade de quaisquer outros aguilhões, o vento virá apenas respondendo o chamado do teu cabelo, que para quem não sabe, tem cheiro do teu nome.


Fique desde já com a informalidade do meu beijo.


Seu companheiro de sempre.

Nuovo Mundo


S'elli ama bene e bene spera e crede
non t' è occulto, perchè 'l viso hai quivi
dov' ogni cosa dipinta si vede;
ma perchè questo regno ha fatto civi
per la verace fede, a glorïarla,
di lei parlare è ben ch' a lui arrivi

(Sim meu capitão, o céu não anuncia tormenta: estrela aberta, dorso nu da noite que deixa tudo ver. Ay Ay, mão firme no leme, rumo tão certo que ninguém chorou Alexandria. Dorme ela no fundo das águas calmas do mar sem ondas, terror da tireme. Sim meu capitão, creia-me: terra em vista em noite sem lua: sem o farol, o céu é mais claro. Ninguém chorou Alexandria meu senhor, meu capitão, ninguém.)

Nor dread nor hope attend
A dying animal;
A man awaits his end
Dreading and hoping all;
Many times he died,
Many times rose again.
A great man in his pride
Confronting murderous men
Casts derision upon
Supersession of breath;
He knows death to the bone -
Man has created death.

("Alto lá!" grita o que dorme. O que desperta espera: crê, sofre o que não tem convés. Sim meu capitão, a água abraça mas não envolve: Alexadria se foi e nada mais se faz oculto. Tout a droit, com a graça de nosso Senhor. Não temos tempo para a novena, o vento novo não espera. Que os mortos cuidem de seus mortos: estamos com peso a menos. Tout a droit mon captain. O esqueleto de Netuno é o nosso desafio e na veia exposta singraremos. Esqueçam as musas, amigas das sereias e o seu Canto maldito! Canto maldito! Canto malade! As devoradoras de tiremes riem em números grandes, cifras enormes, mas não de nós, stranieri, surdos, filhos de Ulisses. We cast the derision upon you, confronting, surely some revelation is at hand: meu capitão, seja a cera que cobre nossos ouvidos)

O mito é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo -
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.

Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos criou.

Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade,
E a fecundá-la decorre.
Embaixo, a vida, metade
De nada, morre.

(Por certo: TERRA. Vês? É todo o teu mundo novo que ali se descortina, de braços nus te recebe, tal qual a parábola do novo-livro, pródigo. Boa nova, corre, grita, cabeça para dentro da escotilha, alerta teus outro irmãos, os de braços-cansados, alma opressa, coração no porvir: chegamos, oh meus amigos, meus irmãos. Enche teus pulmões, ri teu riso e chora teu pranto: aqui o mar é doce. Escutas? É o grito de quem te esperava: cá estou, meu marinheiro, bravo varão! Abraço apertado é começo de fado, ah! Portugal, tuas mães já não choram. O Aqueronte é pra lá de Alexandria, morreu o dia, a noite nasceu. Era escuro e sem farol, mas chegaste com a luz da coragem dos que tentam, rebentos sedentos daquela aurora. Sentes? É o calor de quem sempre te quis bem. Beija o solo, sente o gosto deste mundo-novo que todo absurdo agora é pouco, tens teu porto: "Meu Senhor, meu capitão, aqui cheguei")

La liberté consiste à pouvoir faire tout ce qui
ne nuit pas à autri; ainsi l'exercice des droits
naturels de chaque homme n'a de bornes que
celles que assurent aux autres membre de la
société la jouissance de ces mêmes droits. Ces
bornes ne peuvent être déterminées que par la loi.

(Nós, os nativos te saudamos! Sejas bem-vindo, em nome do Rei, nosso amigo, nosso irmão!)

Verkaufsschlager


Nós, homens do conhecimento, não nos conhecemos, de

nós mesmos somos desconhecidos - e não sem motivo.
Nunca nos procuramos: como poderia acontecer que
um dia nos encontrássemos? (...) Nosso tesouro está
onde estão as colméias do nosso conhecimento. (...)
Nas experiências presentes, receio, estamos sempre
"ausentes": nelas não temos nosso coração.

(Muito foi dito e conversado esse tempo todo que passou. Todo mundo tem a resposta daquilo que diz respeito só a ti. Facilmente tira-se do bolso a resposta dos teus problemas, e rabisca-se no guardanapo o número-chave que vai te arrancar do ali-ausente. Ah! - gritou o português de antanho - nunca conheci quem houvesse levado porrada. Cruz na porta da tabacaria dos outros é o refresco do não aconteceu comigo. Poisé meus amigos, campeões em tudo, peço licença para a minha vileza)

(Aceita um aviso? Saturno chega para todos. Sei que estou soando rabeca perto de violino, mas melodia não respeita números. Quer outro nome? Chame de crise dos 25, ou depois, crise da meia idade. Chame do que quiser, o deus é meu eu que me resolvo com ele, apesar de ter endereço em outra pedra. Todavia, um dia, deitado na tua cama, ensopado de um suor que não é teu, vais querer abrir a janela para tomar aquele vento, refrigério da consciência. Se for noite sem lua, contemplarás deuses e astros e dirás "E eu com isso?". Talvez ria, alto, para abafar o som do panteão em órbita, do anel que gira e te mira com o olho dos que esperam. Entre-tanto riso, contigo não vai ser diferente: será alta noite quando o deus chegar em tua porta. Ele vai te carregar no colo com todo o cuidado e vai te deixar exatamente no centro daquilo que tu vens construindo. Dali para frente, mein freund, a encrenca é tua, e só sua)

(Por isso e por agora é fácil ter resposta para o que os outros passaram. É fácil pedir a morte daquele que é tão igual a mim e a você, e que foi tão diferente, porque assumiu para o mundo que estava louco do afeto que não entendia. A sociedade em nós, o "espírito de turba" que o francês categorizou, nos enche desse bom senso fácil, do dedo que aponta, da máxima que degreda. Gostamos de atirar na lata de lixo da vida todos aqueles que ousam aparecer em enfusões daquilo que mais tememos mais sabemos que também está dentro de nós. Há quem não tenha cometido uma loucura por "amor"? Existe essa criatura que não sofre quando assunto pula para fora da caneta e vem cobrar tinta dos teus órgãos mais vitais?)

(Pelo visto você sabe a resposta de tudo, e você, champ, nunca fez a burrada de gostar. O que eu digo não se aplica a você, e eu mais uma vez perco meu tempo com minha mania de fazer filosofia em muro alheio. Picasso não pichava mas nunca teve o gosto de experimentar uma contravenção. Já de mim, assumo-te: fiz e vou continuar pecando. Por que? Ora meu amigo, aguardam-me no país da fleuma, mas vou morar em cima do pub: eu sempre gostei do paradoxo e não enfrento problemas com dicotomias. Sei que no final mostro minha verve marxista e sintetizo tudo de uma forma que deixaria pasmo até você, a eterna gestante de um conhecimento que nem mesmo inglês quer ver)

(E já que estamos falando da Alemanha, eu te deixo outra sugestão: a única coisa que levamos daqui é a lanterna que Diógenes nos brinda quando ao final do tudo posto. Cinismo não é comédia de pseudo-sábio, é a recusa do costumeiro. Certo que tudo é moda, e deixe isso de ser diferente para teus filhos adolescentes: aprendemos também com o de antes. Nossos pais foram mais felizes, a prova disso é que eles não precisavam de tantas comédias românticas que ensinassem a eles o valor daquilo que, agora, é estranho e esquisito para nós. Ah, l'amour... suspiros, reticências, mais suspiros, reticências. Tudo isso, de fato, pertence ao plano atual da retórica esquiva: na matemática da vida, 1+1 é sempre = 1 inteiro. Infelizmente não é todo mundo que tem esse cálculo na sua grade curricular)

(Por isso campeón, não peço entendimento, peço espaço. Menos pressa na hora de julgar os outros e caldo de galinha não faz mal a ninguém. Tens toda essa bagagem, todos esses livros e esse monte de gente que já morreu. Já dos meus papéis, fiz fogueira: filho da pedra gelada, precisava de lume para me aquecer. Mesmo sem Saturno (ainda), recomendo-te a mesma coisa: fogo é luz que pode te mostrar o caminho para fora do umbigo)

(Menos prozac, mais presente. Não somos tão inteligentes assim. Título se pendura na parede, não no peito, que machuca. Passaremos longos anos vendendo no atacado nosso "tesouro" para trocar pela esmola de um bem-querer: isso de ser só é fácil quando se é pouco. Vem o dia que queremos mel, e para isso, trabalho em equipe: colméia. Não venda barato teu ferrão, guarde-o para tua abelha rainha)

(auf Wiedersehen Meister)

Banho Demorado


(Hoje no banho, pensei em você: não bobinha, não desse jeito. Na verdade, seu nome escorregou da minha cabeça de maneira muito mais grave. Não quero com isso desmerecer tua feminilidade, mas acredito eu que tenho outras formas de homenagear as que passam, e mesmo as que ficam. Sabonete para mim é estandarte da virtu, fortuna da limpeza. No banho construo purificando-me. Digo tudo isso, para preencher de respeito ambiente tão questionável. Conto com tua boa vontade e inocência, na superação dos clichês imaginativos herdados de crônicas outras)

(Sim, dizia eu que pensei em ti. Pensei para me perguntar do valor daquilo que carrego comigo. Canso de repetir para quem quer e quem não quer ouvir que sou o "tipo de cara" [maneirismo dos 80's] que procura ver o lado bom de tudo. Sou. Que procuro guardar o que há de bom, de ser grato. Verdade. Que tenho uma infinidade de defeitos, mas que sempre tento lembrar que como erram comigo, eu erro também. Sim, é fato. Enfim, que perdôo. Será?)

(É o que eu acredito! Melhor, é o que eu quero acreditar: eu sei perdoar. Erre comigo, não tem problema, que no final eu dou a outra face. Esqueço tão fácil o que me fazem de ruim, que pareço um idiota, ou Mirabeau no mínimo, não importa, tenho aval filosófico para ser assim: sou prenhe dessa moral aristocrática, a benção de Nietzsche. Em suma, tudo suporto, eu que sou largo, e nada devolvo. Apóstolo perdido, acho-me uma Damasco)

(A verdade do dito é parcial: sofro de fato do vício do costumeiro. Explico: o segredo da fórmula do meu sucesso é diretamente proporcional à distância do que foi tocado em mim. É meu bem, eu supero sim, como o mar que não se incomoda com quem ou que veleja em sua superfície)

(Para mim é fácil ser alheio. Filho de Plutão, misterioso não, sofro sim da reserva dos inseguros que acham que dominando mantém as coisas no controle. Gosto de mergulhar, mas que ninguém avance em braçadas no lago turvo daquilo que não quero ver descoberto. Não conheço fundo, mas sei que ele existe, e como bom mafioso que sou, é para lá que despacho o incômodo em se existir, assim me permanecendo assunto só meu)

(Por isso é fácil perdoar. É fácil dizer para você, total estranho, que tudo que você disse ou fez não é mais assunto do dia. Você mora em outro endereço e não faz ninho. Você é... você. Eu continuo sendo aquela idéia que você teve, aquela pessoa que você imaginou, ou simplesmente alguém que você não gosta. Isso me importa? De fato? Não. Insensível? Não... medo meu bem: porque quando você começa a fazer a real diferença, é aí que eu me complico)

(E foi devido a isso que, ao lavar meu cabelo, tive essa epifania que devia me devastar, mas me deixou mais que contente: eu não te perdoei! Não! Eu ainda penso no que aconteceu, no que foi dito, e o que esqueci eu invento e pinto com cores terríveis, carrego no drama, faço-me Dante e senhor dessa comédia que, para mim, reside toda ela nos círculos do inferno que tu, e só tu criaste. Não, não quero Virgílio, pois na verdade eu te vigio com meu olho-que-nada-vê e quero ser só para poder te despejar mais essa minha incompetência. Em suma, é conveniente ser vítima, porque assim eu tenho desculpa de ser, sim, eu. Tua culpa, tua máxima culpa e que suporte meus porquês. Não quero ver o teu desespero, não te imagino sequer capaz de sentir dor. Não conto os teus sim's, só os teus não's, e receba isso como punição, por ter ido tão longe e dentro e profundo naquilo que se convencionou chamar o melhor que há em mim)

(Eu não te perdoei, e fiz isso deliberadamente, porque diferente do que me aconteceu, tu foste medalhista: cruzaste a minha piscina no tempo recorde de 4 anos e 2 meses. Foste valente, desbravadora, Bartolomeu Bueno de mim mesmo. Com tuas pernas fortes e teus braços longos revolveste toda a sujeira do fundo, devolvendo-me certezas cristalinas, reflexo do sol. Fostes única, lugar mais alto no pódium. E como todo atleta nobre, te esquivaste dos teus méritos e dos elogios e tudo que vias era a necessidade de voltar aos treinos para que eu conhecesse cada vez mais o prazer de braçadas cada vez mais fortes)

(Eu não te perdoei, por tua verticalidade em mim. Tocaste onde ninguém tocou com a ponta dos teus pés descalços, sorrindo das cócegas que a lama que o meu fundo te provocava. Todavia, houve aquele tempo que a água ficou dura demais, e se transformou em gelo. O que fazer se o teu esporte é andar por dentro e não patinar sobre? Se tens essa decência de não pisar em solo alheio e não riscar o chão dos outros? Infelizmente, eu também não te perdoei por isso, e te culpei e te culpo até hoje. Eu não soube desculpar tua dignidade campeã e teus títulos nas provas que o meu capricho te submeteu. Fostes, e a mim me coube ver isso apenas como ensejo para reativar meus costumes de pântano)

(Nào tens meu perdão ainda, mas vais ter um dia quando o sol me evaporar e deixar exposto o sal daquilo que sou feito de fato. Entretanto, por enquanto veja nessa negativa o sinal dos teus méritos em mim: teu grande fôlego é parte do que quero sempre ser. Eu ainda te culpo, e se te desculpo é para parecer menos sendo um pouco mais. Tudo isso é fruto do teu absurdo em ter ido tão longe. Peço que aceite por agora o meu já pronto Obrigado. O resto Ceres há de prover em tempos de cheia do Nilo)

(Eu te amo, e por isso, eu não te perdôo. É a maneira escorpiana de dizer que não esqueci todo esse bem que me fizeste ao escolheres existir o tempo que foi junto a mim)


Quando vidi costui nel gran diserto,
"Miserere di me" gridai a lui,
"qual che tu sii, od ombra od omo certo"
Rispuosemi: "Non omo, omo già fui,"