[Pé-de-Flor: uma carta]


Querida amiga:


Já faz algum tempo que não te escrevo. O motivo de meu silêncio é o mesmo do teu: a lama do quintal de nossas travessuras sempre manchava o papel. Também, como te via constantemente, não enxergava o motivo (entre outras coisas) para te escrever. Ficava assim nesse silêncio de cotidiano, onde a mão respondia mecanicamente e o coração tentava adivinhar o que não era dito.

De algum tempo para cá tudo mudou, inclusive você: fostes morar para lá de Chokan. Não tive mais como vivenciar o prazer (secreto) que tua companhia me trazia todos os dias, mas tentei resistir delegando ao meu cavalo o ofício de trazer o vento: furiosamente triste andei pelos campos de para-lá-da-aldeia, chicoteando o lombo que me transportava, porque o passo lento era o sinônimo do odor agradável, cheiro que a brisa suave gravou como teu nome, que é um nome de flor, para quem não sabe.

E por isso minha amiga, que ao voltar de lá para onde não quero ir sem ti, experimentei essa dor que só pode ser a morte, visto que não tenho outro nome para dar para coisa que corta que nem espada nada afiada. Eu te procurei e disseram: too long a sacrifice can make a stone of the heart. Duvidei. Não você, não ela, pois para quem não sabe, ela tem nome de flor e da pedra ela só conhece a terra, fonte da pétala, do orvalho e do perfume que senti quando cheguei em casa vindo de para lá da aldeia, casa do chão. Eu a conheço antes de portão existir, quando tudo era cerca baixa. A vi em beleza de térreo, porque a escada nada serve para ela, só para mim, que sou mais baixo. Duvido. Não digam tais bobagens, retruquei. E desde então, parti também de Chokan, porque não me merece um lar que me conta tais mentiras de inverno quando me sei a andar em primaveras de jardim sempre florido.

Montei meu cavalo, o mesmo que selaste três anos atrás quando me disses: "É guerra sim, porque é luta, mas dura pouco porque ferro é feito de carne". Montei ele e fui para nunca mais voltar para esse lugar. Faz pouco tempo que parti, e no começo fiquei sem saber por onde seguir. Mas aí lembrei teu nome, que para quem não te sabe, é apenas um nome de flor, e tudo ficou claro para mim. Fiz do rio meu guia, e da água peguei emprestado a certeza de matar tua sede, todos os dias.

Foi quando naquela segunda-feira, que é o começo da semana para os que não desistem, ao longe eu te avistei: estavas com o mesmo vestido da véspera de 7,2 vezes 5 meses atrás, quando me disseste "Vais porque tens que, fico porque sou parte". A euforia teria assaltado meu coração se antes ele não tivesse sido tomado pela fé presente de te encontrar ali no caminho para algo melhor. Pensei em correr para ti, mas uma chegada muito apressada podia te sujar com a poeira levantada do caminho passado. Resolvi moderar o passo e te seguir como o cão amigo que segue o ronin: atrás, porém, alerta. De mais longe podia reparar em cada detalhe teu, porque meu olho não só te via, mas te via em presença na paisagem que te rodeava. Sei das tuas lágrimas, contei cada uma delas como contei cada noite que pensavas dormir só. Procurei fazer o silêncio dos que confiam, mas infelizmente, não pude conter as batidas que me vão no peito, a fanfarra que se instalou à tua mirada e que alguns anatomistas chamam de "coração".

E por isso que hojes acordas e encontras ao teu pé essa carta: sei que não conseguiste conciliar o sono por causa da melodia que a caixa de amar do meu peito insistiu em tocar a noite toda. Aceite o tudo dito como um enorme pedido de desculpas. Não queria atrapalhar o teu já escasso sono, mas entenda que é como eu respondo à tua presença. Fique certa também que estou aqui, em algum lugar dessa floresta que é grande demais para ti agora, e que te seguirei até Ku-to-yen ou para qualquer outro lugar que seja desde que seja teu. Um lugar que possas novamente erguer uma casa sem portão nem escada. Uma casa aberta como tua já provada enorme capacidade de amar. Só numa casa assim, pode-se plantar e esperar que germine o teu nome, que para quem não sabe, é sim uma flor, mas do tipo especial que só germina à beira de rio, e que não responde a pretensões de água-parada.

Cho-fu-sa não, que chega disso de metade. Já que é para fazer, façamos inteiro. Cavalgo ao teu lado, minha doce amiga. Ao menor sinal de cansaço teu, desço eu. Erguerei-te com meu braço cheio de fibras e sentarás junto a este teu velho amigo. E sem a necessidade de quaisquer outros aguilhões, o vento virá apenas respondendo o chamado do teu cabelo, que para quem não sabe, tem cheiro do teu nome.


Fique desde já com a informalidade do meu beijo.


Seu companheiro de sempre.

0 Comentar?: