existência & ismos



a idade da razão, esta nossa, é uma idade imoral. é uma idade líquida e perigosa que escorre pelos dedos, onde tudo é imagem e reflexo e fenômeno.

é quando você escuta tudo aquilo que não queria e pensa "ok...". como assim ok, cacete? tu tinhas um sonho, uma vontade, um tesão que fosse! tu te orgulhas de ti mesmo que a tua reação é não ter reação, é você se acha velho e sábio e no teu íntimo fica gritando contigo mesmo istonãovaimeatingiristonãovaimeatingir e por fora é toda aquela falsa calma de príncipe que tinha Napoleão na porta sem pedir licença para entrar. mil exércitos roendo os teus pés de moça e tudo que tu pensas nesse momento é "ok"

e aí você me encontra aqui, com a roupa suja de mais este dia que passou e senta na minha mesa: é deselegante, que senta e não pede copo. eu ali tomando algo para me esfriar as idéias e você nesse mutismo de irmão mais velho olhando a louça que adorna as outras mesas, e apesar de estar com fome quando eu te pergunto se vai algo para comer, vai, tá com cara de quem não comeu nada o dia inteiro, você me olha e diz "nada não, pra mim tá ok". sério, se eu fosse feito de outra matéria mais tangível que um pedaço irado de ti, eu ia enfiar a mão nessa tua cara redonda de fabricar consensos

eu sou obrigado a buscar a conversa: o que foi? você diz que não foi nada, porque o nada é a vizinha devassa desse ok que tu carrega no peito, calibre fino de pistola automática de matar incômodo antigo. e eu mastigando cevada, olhando para a tua cara de peixe criado em cativeiro, imaginando se calo a minha boca e pego minha pasta e vou pra puta que pariu da tua cachola, ou se fico ali, esperando o milagre. como sou consciência, meu ofício é sempre tentar dizer alguma coisa de algum jeito na hora que dá.

vá, diga lá cacete, o que se passa? mil suspiros depois você abre a boca, e é para pedir um copo! aleluia irmão, tava quase rezando a missa para ver se o vinho te deixava mais alegre. cara chato você às vezes viu, e acha que vai resolver tudo com esse anacronismo de pobre coitado que perdeu a última caravela. anda com esse bíblia toda riscada debaixo do braço, e acaba tentando o velho ofício de vender verdade na freguesia alheia. você se diz livre, mas eu que bem queria me ver livre de você.

sim, já que você tocou no assunto eu vou te falar: cansa viu? cansa esse teu papo quadrado, esse teu jeito de sentar com a perna dobrada para não sujar a barra da calça. esse teu olhar perdido de uma sabedoria também ela perdida. de ficar toda a vez enchendo o saco para tudo sair do jeito "certo" e faz questão de empinar pipa quando ameaça tempestade, por ter preguiça de caçar vento. e aí quando molha a mariola, vem choramingas pra casa, e senta na varanda e vara a noite entre "puxas" e "por que foi assim?"

outra? garçon mais uma! é... tô vendo que estamos rebeldes hoje hem? duas cervejas, daqui a pouco vai sair carregado daqui. lembra quando a gente saía junto pra beber? lembra das degustações...? é, eu sei... eu também lembro das bobagens... mas quer saber? foi bom não foi? a gente riu, a gente se divertiu e a gente era mais A GENTE: sim, era eu e você e o.. qual o nome dele? o outro, da tua cabeça também? sei lá... bobo brincalhão! adoro ele! pena que ele é criança e dava confusão ficar com ele até mais tarde na rua, mas enfim... lembra né? não precisa ajeitar o nó da gravata e fazer cara de santo recém canonizado: tô sabendo que não é mais a tua. mas cá entre nós, precisa também essa pompa toda de dia de procissão? se não tá na rua tá em casa sendo o motivo do velório, morto. cadê o budismo, cristão?

não... não... vamos parar por aqui. nada de misturar, nada de beber essa cachaça amarga pra ver se destila essa tristeza do teu peito. eu sei que não tá nada ok, e eu já pedi uma porção de batata frita. mas fazer o que companheiro? a vida é isso mesmo... tem de tudo no circus mundi. tem sal aí chefe? obrigado... então... escolhas. há de se fazer o que? eu penso que continuar se divertindo. quando você chegou eu estava aqui sozinho, e tem tempo que estou sozinho aqui porque você saiu nessa de fazer do mundo uma igreja... e quando tu entras nessa né? olha... não, não estou te desrespeitando, só acho que isso de religião é pior do que essa vodka ruim que tá aí no cardápio: sem moderação, mata também. quem sou eu pra te criticar, eu mal tenho tempo para pensar em outra coisa que não seja o aqui-agora, mas enfim... eu já te vi antes assim, e pelo que lembro, não funcionou muito bem não é?

a idade da razão, essa nossa, é de todo mundo também. então se acostume com o comportamento nada razoável das pessoas, a começar pelo seu: gostar é a arte mais difícil do mundo, quando tentada com a cabeça. enfiar um pincel no peito dói sim, mas só assim se cutuca o coração....

paga a conta?

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