tranquilitudelessness



a moda agora é a de pedir aquilo que não se quer dar. os novos mendigos estão todos ricos e lambem as feridas uns dos outros num imenso ritual antropológico de auto-comiseração erótica.

perde-se a noção do simples, e no lugar dele se implanta uma nostalgia não assumida de que a era dourada do relacionar-se passou. o cinismo é a tônica, o falso dar de ombros, o não é comigo, o estou aqui a passeio. quando não é isso, é o desespero, o querer logo pra agora, o qualquer coisa está valendo, a total falta de senso crítico e amor próprio.

o cenário é dessas savanas africanas, com a diferença que se quer ser gazela quando na verdade se está mais pra gnu com a pata presa na beira do rio sem crocodilo: todo mundo se acha em constante ameaça de um mal imaginário, e as mais tresloucadas posturas defensivas (paranóicas) são colocadas em cena. com isso, os bichos pularam para nossa frente na escala das coisas que vivem, porque enquanto ficamos com medo do que poderia vir a acontecer, eles pelo menos fazem da tentativa/erro sua lógica de vida.

é por essas e outras que toda essa conversa sartriana de cabo da boa esperança não me convence. não acho que o remédio para os vinte anos seja fazer trinta. acho que o que mais há aí é o exagero na dose de remédio, tranquilizante pra cavalo no lombo de gente: contra o frenético, a apatia.

que a poesia me perdoe, mas eu não acredito na tranquilidade. sim, não acredito que tudo se dissolve em um súbita epifania, que mais parece outra dessa heranças malditas do Disney. claro que há o revéz disso, da pornografia como modus operandis de toda forma de se relacionar, que é o outro exagero, mas você se engana se eu acho que a solução está num príncipe com a camisa aberta mostrando o peito cabeludo, ou uma princesa de cinta-liga.

não. a pior desgraça para uma caravela, tanto quanto o mar revolto de corpos, é a ausência do vento, ou de beijo. eu nunca vou conseguir me comportar, minha senhora. eu vou ser sempre apaixonado, por tudo que faço, por todos que toco. não vejo porque deixar de ser assim. não, eu não quero essa sorte de me tornar maduro, ou seja lá qual o nome que você dá para esse amor de persiana fechada e gemido abafado: gostar para mim é compartilhar. eu não tenho medo de errar, de me machucar, até porque é fácil disso acontecer. o que já me assustou de verdade foi acertar, porque ninguém sabe o que fazer quando acerta, tão acostumados estamos a esperar e querer o pior. ninguém acredita que está certo, e o mais grave, não acreditamos que alguém esteja realmente disposto a procurar o centro daquilo que nos move.

talvez eu seja um mentiroso, e no fim das contas, tudo isso que digo é o jeito que arrumei de ser tranquilo. é como acordar todo dia cedo e sentar na beira do mar e começar a não se incomodar com o mar que arrebenta na pedra e te respinga sal na língua. vai ver é isso mesmo, de se apaixonar pelo caótico, de abraçar o incerto, de flertar com o perigo, namorar com o inesperado. de sair de mão dada com o que ninguém imaginou pra ti, e ao final ser feliz, mas não como nos contos de fada: depois do "fim" fica ainda muito pano pra manga.

eu sou feliz como sou, e melhor ainda, faço feliz sendo como sou. todo meu combustível vem do sorriso que arranco, do espinho que tiro, do abraço que dou, do beijo que roubo, do carinho noturno. eu não vou mudar, não vou me tornar alguém melhor, pelo contrário, a previsão é me tornar cada vez mais assim como já sou, até conseguir gravar na pedra do coração de quem amo esse jeito pagão de cultuar deuses antigos, inquietos, humanos....

"Um quietismo estético da vida, pelo qual consigamos
que os insultos e as humilhações, que a vida e os viventes
nos infligem, não cheguem a mais que a uma periferia
desprezível da sensibilidade, ao recinto externo
da alma consciente.

Todos temos por onde sermos desprezíveis.
Cada um de nós traz consigo um crime feito
ou o crime que a alma lhe pede para fazer."
- Fernando

0 Comentar?: