Leocádia




esta noite eu viajo
por longos e infidáveis caminhos
por infinitos de anos e vidas, esta noite
eu viajo

eu abro o peito e dele brota uma lua
meio minguante, meio cega
como o sorriso triste e resignado
da amante velha do jovem moço
que sabe que tudo nela é passageiro
o carinho, o toque... um beijo
tem o sabor rançoso de uma porta fechada
ou de uma saia que não mais lhe cabe

eu abro a mão
e do dedo cai uma direção
uma gota de pele na calçada que me cobre
a timidez do pé descalço
a unha bem feita pela boca nervosa
linhas de uma vida na palma
coqueiros da praia silenciosa
falanges ausentes e trêmulas
decepadas pela lâmina cega
dos séculos de reclusão e egoísmo

eu viajo esta noite, como
ontem eu também viajei e
amanhã vai ser um outro lugar
porque estar longe é que me faz
suportar estar perto

eu passo esse tempo todo
andando para não ter que falar
pois falando sei que paro e aí
eu vejo, como já vi
esse teu reflexo de miragem e
maldição, a cobrir qualquer sol escuro
como cinza de um vulcão
que se recusa a parar de vomitar
diariamente, as verdades quentes
de hoje e sempre

quando eu me deito na cama
é porque estou cansado
e ali deitado eu sou testemunha
de um outro casal, e meu prazer
é o prazer secreto dos que
fazem da fé mútua dos outros
uma tábua de salvação

e nessas horas eu penso que tu pensas
que eu tenho raiva de ti, que tens raiva
de mim, penso no tanto que pensamos
e ainda pensamos, e fizemos e ainda
fazemos, mesmo sem o querer, ou
quando queremos, é um ato tão secreto
quanto a nossa melhor lembrança

cada dia que eu vivo
cada corpo que eu me esquivo
ou que não evito
faz crescer em mim o desejo
mais que forte, sincero
de te dizer o que todo mundo
quer ouvir: a certeza,
não que isso te isente de
determinadas coisas tuas
para comigo, mas de mim para
ti, o compromisso é de te dar
os parabéns por toda essa
beleza cultuada, marcada
na pele, tua, minha, em
suor, lágrima e outras secreções.

Não há nada mais difícil hoje
Do que a simplicidade do afeto
dado e recebido, sem as conjecturas
dos atropelos e perguntas
descabidas. Isso não há, e quando
eu lembro de quantas vezes tua
insegurança me fazia repetir
mil vezes mil o que eu sentia por ti,
eu hoje olho pra mim e vejo que
cada gesto de amor que em ti
escrevi, fez por mim mais do que
todo desacreditar poderia me furtar.

Eu só posso te abençoar
como te abençoaria
o dia curto de uma noite
de janeiro, mais ao norte.

É doído lembrar, mas toda essa dor
é apanágio vivo da tua vitória
e por mais que eu sinta raiva de ti -
e sinto - não tenho como não
reconhecer, que ao fim, magia tua
ou não, eu me transformei algo
melhor que sapo, apesar de não-príncipe,
de teimoso que sou.

Por isso que hoje
eu navego pelas águas turvas
de dias negros, mas tenho como
semblante, a serenidade do porto de
ontem, das risadas do mercado,
as crianças que se atropelavam,
das frutas que rolavam pelo chão
de terra pisada, como sonhos destruídos
que se racham para da casca dura
escorrer uma seiva, e nela
a infinitude de tuas sementes-gestos,
coração em broto de amanhã melhor.

Eu me recuso a te oferecer
qualquer coisa em holocausto
eu me recuso a reconhecer miletantas
coisas, eu me recuso e na minha
recusa está contido o que me há de pior,
logo-lôdo, parte menor e grande
de tudo que sou feito:

Mas quando for amanhã, e
já não for mais janeiro, o calor
vai nos fazer abrir a janela.

Eu vou te dizer: senhora... obrigado,
hoje não digo nada disso, e
contento-me em lamber-me
as partes menos íntimas, que
morro de medo de qualquer exposição.

Entretanto, entre os inúmeros nãos
fica um, o de não me entregar e
não desistir, de lutar e aguentar
e suportar e engolir, lamber o copo
de fel, abraçar a mão da adaga,
beijar a língua ferina, massagear o
coração invisível, e tudo isso faço
como herdeiro do imenso campo
dos girassóis negros - nós dois -
faço como lembrança,
ou castigo...

Espero o dia de entregar este
mesmo campo, renovado em
cultura e lembranças, e então aí
vou deitar, e descansar até que
algum outro uivo, ou uma lua,
despertem-me do meu sono
de gente, e me façam acordar
para o dia dos bichos...



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