ofício de filho




fazia tempo que eu não ouvia ele na minha cabeça, tempo que não pensava no tempo que passei ouvindo aquela sabedoria de gelo. os dias que contam as horas que antecedem as visitas dele são assim: mudos. é como se a ausência das palavras retirassem do chão todos os ladrilhos que impedem-me de perder o referencial, jogando-me assim que nem meteoro de encontro a ele.

ele é lento como uma morte anunciada, que pinta a parede do quarto de quem se apaga e deixa tudo mais escuro. ele tem essa barba branca de médico que carrega o último noticiário, mas ele nunca vai te dizer "olha, eu sinto muito". o manto dele é da cor do que tu fugiste a vida toda, e mesmo assim, ele consegue manter a aparência saudável, tez desse branco luminoso, última faísca que olho enxerga antes de fechar para te dizer boa noite.

ele é um deus, e minha pele se arrepia em pensar no quão pessoal esse título soa aos meus ouvidos.

mil vezes ele me viu morrer, e mil vezes ele foi me buscar. depois de cruzar o mar, eu sempre acordava deitado na carroça dele, a cruzar o infinito das vidas que nunca me acabaram. algum tempo eu ficava ali deitado, padecendo dessa preguiça de decomposição: era preciso uma dessas pedras da vida cruzarem o meu caminho para sacudir os vermes que me preenchiam de alguma sensação teimosa de matéria.

ele nunca conversou comigo. nas inúmeras vezes que nos encontramos ele nunca me disse uma palavra, ou fez algum gesto mais brusco que o translado de última rocha. ele foi sempre assim, e com o tempo eu aprendi a imitar ele, no amor pelo negro escarlate que marca a mão que carrega os corpos de quem não fica. com o tempo eu fui perdendo todo o calor, até que o sol mesmo se transformou numa figura de linguagem: algo que colocaram lá para substituir o que todo mundo tem medo de dizer o que é.

quando eu me cansava, eu lembro dele me pegar na mão e me jogar de volta pra cá. eu batia no chão com força, e da queda ficava tonto e esquecia de tudo: de mim e do meu ofício. guardava uma vaga vontade de morrer, mas o corpo queria viver e me pedia carne e sangue. e eu dava carne e sangue, mas achava contraditório funcionar em algo que para morria enquanto vivia, e, nesse comédia de gato e rato, comia os dedos para só então viver.

várias vezes repeti esse jogo de cena em que eu era o ator de uma máquina produtora de odores esquisitos, alguns deles tão acres quanto o súbito estourar de uma mentira. ao fim de cada ato, a tragédia tinha o mesmo fim: eu e alguma lâmina, bicho ou notícia ruim na encruzilhada da passagem estreita do corredor frio.

eu aprendi a retirar o prazer da sensação de finitude: de imaginar que cada dia que passa é um pedaço que se foi. isso tudo me trás pra perto dele, e do nome que ecoa na minha cabeça desde que pela primeira vez eu consegui calar minha arrogância para poder despertar em vontades de mitologia. foi ele que me ensinou como cortejar a última senhora, e foi ele que me mostrou que do peito seco da morte jorra um leite mumificado pela costura delicada dos dedos do chacal, um outro amigo.

ele é um deus, e o seu nome é a chave que fecha a porta. eu não tenho nome, mas procuro ser o acúmulo de pequenas-mortes que me façam merecedor do único título que procuro: o de ser o filho dele...

por isso, silêncio sim, necessário: porque é do ofício de quem dorme carregar os que se esqueceram de acordar. mas que toda ausência seja feita da consciência do trabalho feito ou do que ainda pede por ser feito. essa foi a maior lição ele me deixou: deixar toda a conversa para os mortos, porque esses sempre tem algo o que dizer ou inventar.

fazia tempo que não sentia ele, mas hoje ele veio me ver. a mim não cabe outra coisa que não seja retribuir, ajudando-o a arrastar outros quase-vivos para esse reino pulsante das ausências de si mesmos. sinto meu pulso gelar e o ar que me escapa eu expulso com alegria.

silêncio sim: porque ele assim quer...

silêncio e escuridão, que hoje é dia de serviço.

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