preta no branco



estes dias eu fui até a minha gaveta e procurei um desses textos antigos que eu guardava para dar para ti. pensei que era a coisa mais óbvia a se fazer, afinal toda essas coisas escritas tem em si mesmas essa qualidade de juntar mofo: ficam ali em algum escaninho da tua alma, para quando aparecer aquele outro alguém você não ser pego de surpresa.

fui no catálogo e fiz minhas busca. pensei em te dizer algo que começasse com o céu e terminasse no chão de alguma praia, como um reflexo de lua-louca a dar pulinhos de meia-noite, que é quando amanhece para quem tem boca e beijo. pensei em fazer alguma metáfora entre o escuro lá fora e claridade que vai aqui dentro quando você se desnuda, nesse translado de embarcação antiga, que penetra o mar com essa segurança de sempre-mundo-novo. imaginei as ondas que arrebentam na minha praia todos os dias que trazem o cheiro do teu metal velho e bom, mas ao final vi que qualquer pretensão de fazer líquido dessa matéria toda, beirava um pecado horroroso de carvalho, crucifixo e pinho.

fechei os olhos e catei qualquer coisa dentro de mim: veio o de sempre. vi-me como em um espelho, alma velha e disposta, com a barba feita e os dedos enrugados. a vista sempre falha, que é o peso da ingenuidade. vi-me como em criança, os braços abertos, as pernas ensaiando passos que eu achava já ter dado, pretensões de quem engatinhava. vi novamente o céu, mas desta vez num dia claro de um dia que não existe na semana, algo como uma sexta-feira e uma terça: começo do descanso e o meio de alguma coisa. remexi-me para ver se sacudia de mim uma impressão mais exata do que fosse, mas só consegui ficar suspenso entre um dizer, um sentir e um agora é.

agora eu tinha uma lua num céu claro, e uma embarcação que balançava as ondas de um dia para copérnico definir. remexi mais o fundo da minha gaveta, com tanta vontade que toquei em alguma tripa minha solta, porque senti uma fisgada, dessas que a gente diz "ai" antes da dor, porque uma das sabedorias do corpo é avisar que tem algo grande perto. eu digo "tripa", mas na verdade quis dizer outra coisa que não revelo agora por algum falso escrúpulo, que nada mais é que a vontade de te ver adivinhar o nome de tudo que me vai por dentro...

e aí, o certo é que depois de muito tempo procurando, não achei nada. revirei tudo que havia dentro de mim, e nesse ofício destranquei portas e janelas e assoprei a poeira que ia por cima e por baixo. coloquei tanta energia nisso, e enquanto tinha energia procurei. quando cansei, sentei.. e o cansaço me trouxe um conhecimento de estava-na-mesinha-o-tempo-todo: você esteve sempre à vista, debaixo das camadas de coisas outras que não eram você. e quando você se mexeu, eu senti, e quando falou, eu ouvi, mas ficava rodando dentro de mim buscando um conceito, uma conversa ou um mimo velho para ver se te acalmava, porque pressentia essa tua vontade de papel branco em prateleira antiga.

por isso, este texto de hoje é em verdade o resumo do fracasso que eu venho sentido constantemente de te dizer algo que já decorei. eu simplesmente não tenho uma metáfora ou qualquer figura de linguagem que me satisfaça, que me faça dar aquele sorriso largo, que pesa na boca e faz a gente se espreguiçar na cadeira e dizer "eis ela, ponto". não tenho nada, o que é um tanto paradoxal, já que você me trouxe tudo.

em suma, peço que me perdoe pela simplicidade, pois ancorei todos os barcos, calei todas as luas e não gosto de dia muito claro. sei que a poesia perde um pouco hoje, mas mato ela para te dizer que simplesmente te quero desse querer de punhal cravado no livro, em golpe certeiro que não deixa escorrer uma palavra sequer. tenho por ti esse afeto incontido e vertical, como uma mordida em fruta recém-colhida: eu adivinho o teu gosto antes que você se misture na minha saliva, coisa que faz tão bem.

eu só tenho isso pra ti: um jeito de gostar tão completo, que me sinto como um ex-leproso na praia de nudismo. sinto-me os mais feliz dos "caras", e tenho essa vontade de sair contando vantagem a todo instante. tenho vontade de te esfregar na cara de todas as outras mulheres, não por raiva, nem mesmo por desforra, mas uma vontade de fazer de ti empirismo dessas loucas que andam por aí esquecidas do básico do básico, outra coisa que você faz tão bem.

é bom acordar todos os dias e saber que a única coisa que esperam de ti é que você seja você mesmo. outra coisa boa é acordar todos os dias com a calma de querer dos outros que eles sejam eles mesmo. acho que isso se aplica bem a nós dois: naturalmente somos o que há de melhor um pro outro.

não me resta mais nada, que não seja rasgar a carne, e suar um "muito obrigado" todos os dias, seja por ti, seja em ti. não que eu esteja de novo prenhe de pretensões líquidas, mas é a única maneira, a moeda, que encontro para saldar minha dívida contigo: o meu trabalho, dedicação, tesão e enorme carinho.

em suma, digo tudo isso para dizer que te amo. é simples assim.

2 Comentar?:

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

Sim, meu bem, somos naturalmente o que há de melhor um para o outro porque não precisamos nos podar para crescermos juntos. Precisamos, ao contrário, deixar a nossa copa assim: com essas folhinhas desniveladas que saltam em cores que variam entre o verde e o amarelo. Não importa! Afinal, que graça tem uma árvore que reflete no chão uma sombra tão certinha quanto a sombra de um disco? Nenhuma. O bom mesmo é ficar ali sob aquela sombra ampla, tão-ela-mesma, olhando-a sobre diversas perspectivas e tentando imaginar desenhos no contorno imperfeito dela. Sim... e, no final do dia, saímos debaixo dela a sonhar tanta poesia! E vamos para casa felizes, dormir absorvidos pelos mais desvarios e lindos devaneios que se possa imaginar! Porque o lindo e o difícil mesmo é isso, meu bem: ver tanta poesia onde supunha-se apenas existir a sombra de uma copa mal cuidada. Mas, paradoxalmente a isso, somos o que há de melhor porque não nos aceitamos como somos, afinal, alguém já disse que não devemos nos esquecer que, para nos tornarmos o que devemos ser, não podemos continuar a ser o que somos. Então, para isso, a gente não pega todas as ferramentas do jardineiro para mutilar as nossas imperfeições, pelo contrário: a gente pega a água, o sol, os minerais, muito amor, carinho e paciência. Porque somente assim conseguimos nutrir e fazer emergir o que há de melhor em nós mesmos!

Te amo, meu bem.