Pedro Ayres





























algum tempinho se passou desde que mandei a última notícia. dizem que a vida é o que acontece entre os silêncios: o choro de entrada aqui é o início do barulho, e a morte, o óbvio último acorde. todo o resto é zoada.

claro que eu me cobro alguma satisfação, mas tem momentos que a palavra é prata, segundo lugar no podium, e o ouro vai para quem te encontra na rua e te responde com um "eu? ah... vai tudo na mesma": risinho acanhado, mãos no bolso, e um sorriso triunfal escondido na falsa-modéstia de quem finalmente saiu debaixo da chuva.

claro também que todo dia cobram de mim alguma satisfação: os convites à prática do descaso por quem te guindou à altura de companheiro chovem. para alguns você é besta, sem graça, um rei vestido, sem nada a acrescentar, nem mesmo uma leve fofoquinha. para outros é motivo de comentários dessa gente que exercita criatividade falando do que não sabe. sobram no fim alguns poucos que vibram contigo, e até mesmo te surpreendem te imitando naquilo que você tem de mais chato e tedioso.

por isso, até mesmo escrever está difícil. vou te dizer o que? que tá tudo bem? posso até colocar um adjetivo: está tudo INCRIVELMENTE bem, ou está tudo ESTRANHAMENTE bem, mas isso eu faria mais para te fazer um agrado de alcova do que dizer a verdade. incrível por que? estranho por que? eu lutei e luto a vida toda para isso: sinônimo de vitória pra mim é saber que procuro viver a exata medida de tudo que sei posso ser, sem buscar ser demais, nem me contentar com o de menos. a balança está entre o orgulho e o medo, a temeridade e o receio.

quem aqui verdadeiramente gosta de todos os dias ser obrigado a ser esse "ator social" que os seus arredores exigem que ele (a) seja? quem aqui não chega em casa e sente um cansaço sei lá de onde veio, um descontentamento surdo e insípido, que nem mesmo o gosto de boca-alheia consegue colorir? poisé... ninguém... e todo mundo: gosta porque tem preguiça de sair dessa, ou finge que gosta, ou se diz que gosta todos os dias na frente do espelho, quando chega do circo, maquiagem borrada, e vai tirar a crosta de qualquer coisa que se pintou com álcool e chôro baixinho.

a distância vai crescendo, crescendo, crescendo, até ficar aparentemente insuperável. aparente porque eu acho que não devemos desistir nunca de ser alguém para alguém, mas isso não te coloca na posição colonial de boi-de-engenho, canga pesada no pescoço, arrastando quem quer cochilar. é natural encontrar, como também é desencontrar. deixar ir é talvez uma das maiores virtudes que se aprende na vida: vai filha (o), pega o beco. sim, desapego não é apanágio do descaso, todavia, camarão que dorme, a onda leva, não eu.

por isso, não estranhe esse espaço entre-missivas. eu cada vez mais me torno um desses sujeitinhos de óculos e camisa passada, casaco poído, alpercata, e jornal debaixo do braço num sábado de manhã cedo de quem não conhece sexta-feira até mais tarde. minha luta diária é para adotar a religião do tédio do "cidadão pacato", essa gente grís que você não quer ver nem pintada de cinza-lábio-sem-batom, sabe, de passear com o cocker debaixo do bloco, de dar bom-dia pra tua mãe, perguntar como vai você (apesar de saber que você está em casa dormindo) e mandar aquele abraço. volto pra casa, ligo no treino da corrida, leio o jornal e... ganho um beijo de alguém tão chata e cafona como eu.

era isso. desculpe se de alguma forma eu te frustei com o dito, mas sei que com o não-dito você faz as tuas notícias e continua no teu ofício. peço licença agora para ir, que amanhã acordo cedo, em tempo de tomar café, dar nó na gravata e voltar para sina: fique bem você também!

"Nada mais havia de distintivo sobre estas duas classes além do que já observei.
Seus trajes pertenciam àquela espécie adequadamente rotulada de decente.
Eram, sem dúvida, fidalgos, comerciantes, procuradores, negociantes, agiotas –
os Eupátridas e os lugares-comuns da sociedade, - homens ociosos e homens atarefados
com assuntos particulares, dirigindo negócios de sua própria responsabilidade.
Não excitaram muito minha atenção".

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Lorena disse...

Nisso tudo que tem cara de tédio eu vejo muita alegria. Essa alegria só é diferente daquela que se sente nos excessos, porque ela constrói, e é preciso um grande coração pra enxergar isso. Mas mesmo assim, ela não significa abnegação, e você conhece o equilíbrio.
Na verdade, as coisas cafonas também são uma revolução. E por mais certinho que a gente se torne, ainda existe muito pra consertar.
<3