fauno no espelho (II)
























(I)

quem sou eu?

eu sou uma fraude. onde venho chamam-me "monstro", quando sou apenas vontade e libido. eu sou a pulsão, o não e o sim. não tenho pé mas tenho mão, e não preciso do silêncio de meia em casa, porque chego sem cerimônia sempre quando a festa está ao meio. eu não peço que celebrem, mas sou o último a sair, porque é o do meu ofício limpar todas as taças por dentro.

eu não me depilo e nem tenho esses pruridos de máquina azeitada. dos ébrios eu sou o mais comedido, e não perco meu tempo nem incito condutas extravagantes que derramam ouro e estragam o vinho que adornam os lábios das minhas mais belas cortesãs. eu sou bicho, ídolo dos pastores de ontem e hoje que me querem sempre junto em seus dias de folga. eu nada condeno nem também sou o redentor de quem se é sozinho. sou filho da cabra e do homem, num desses coitos escondidos entre a natura e a filosofia, essa também outro bicho, muito menos domesticada do que eu.

na falta de mais, eu sou menos, e na curteza das coisas eu sou o exagero. não sou culpado de nada que não seja ser o que você é.

e quem é você?

eu sou sim, o grito do não. eu sou a extravagância do bicho, monstro depilado de mãos horrorosas. eu sou filho da filosofia e do cálculo, o dedo que cala a cortesã. sou ídolo solitário dos redentores escondidos. eu sou filho do tempo, da morte e tenho medo da vida. ando com os pés calçados, quase-cascos de tanto que me acostumei a não sentir mais o chão. nunca chego a tempo de festa alguma, porque faço questão de não me convidar para nenhum bailinho, receio do ridículo, receio ridículo de quem não é cabra.

eu sou uma verdade, pronta. nasci feito, de pai e mãe e barriga lisa. não tenho do que me envergonhar porque não tenho com quem me envergonhar. sou cortesã de um rei cego, que come ouro e vomita as minhas tripas. meus cabelos andam soltos, domesticados pela chapa de cerâmica e o olhar da outra burra que nem eu. apesar disso, não sou bicho, porque tenho as orelhas curtas e um jeito de pensar menos longo ainda.

sempre menos, nunca mais, do exagero sou o basta. sou culpado de tudo que não seja a alegria de ser você.


(II)

falo eu, falo o fauno.

eu sou o espelho de todas as coisas
eu sou o limite de nada
eu sou o fauno, eu sou o falo
gigante protuberância
de carne e músculos
e vontades e pulsões

eu sou o retrato de todas as sociedades
sou dos seus membros, o fluído
que escorre em vida e negação dela
na dor das filosofias de outrora
nas culpas das hipocrisias de sempre
esquecidos que eu também sou,
de todas, a mais antiga
das religiões

eu sou o fano, eu sou o falo
mas eu também nada falo
porque me calaram
e me colocaram montado
e ferraram meus cascos
e hoje adorno as vitrines
e causo os risinhos escondidos
das moças que viram uma foto minha
numa dessas magazines
perfumadas de incenso
odores fabricados
de dinheiro e mato de mentirinha

apesar disso tudo
eu ainda sou o fauno-rei
todos os anos eu ainda morro
só que agora sou sacrificado
em cima da cama, na caixa de concreto
em meu nome violam as moças
violam os valores
violam a alegria
chamam-me sexo, esquecidos,
essas toupeiras eletrônicas,
que eu sou da carne, mais que o sangue
sou do sémen, o que nada
sou vida

ordeno eu, ordena o fauno
que em meu nome sejam todos os dias
sacrificados um sem contar
dessas emoções banalizadas
que morram todas, de uma só vez
porque quero nascer, no ano que vem
entre os pastores e suas filhas
quero derramar vinho em seus seios
e colocar minha língua em seus ouvidos
quero rir o riso de ontem, ao falar do que é hoje:

quero fazer de vocês todos lenda
subvertendo a ordem de tudo
bibliotecas de cabeça pra baixo
quero ver como se sentem
sendo vocês também
mitologia


(III)

falo eu, falo
falo eu, o falo
falo eu, não falo
falo eu, e só eu falo
falo eu, sou eu
não o falo, eu
não falo, o falo
fala, e eu
me calo


(IV)

fala ele, o fauno
e diz o que eu esqueci
ele sou, e eu, não sou o falo
sou mais que o sémen
que eu derramo em teu colo
sou mais que o ventre
ao qual me atiro
aos milhões, bilhões, nem sei ao certo:
é do crime essa capacidade de escorrer
de dentro de mim, pra dentro de ti
de dentro de ti, para algum lugar
que não sou eu


(V)

falo eu, o fauno
eu que sou o espelho de ti
não me negue, não se negue
que eu sou o arqueiro,
aljava e flecha-certeira
mira alta, teu coração

falo eu, o fauno
o ascendente, a alegria
o riso ao fim do dia
a cerveja no copo, a amiga no corpo
que isso tudo também é
e fruir não é o teu crime
mas não viver

falo eu, teu falo
teu amigo, não o mais caro
falo eu, não você:

você é o fauno

dito isso
me calo.

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