shhhhhhh!!!!!




você é a primeira pessoa que eu não preciso dizer que gosto, então, eu prometo solenemente que da minha boca você nunca vai ouvir nada que vá alimentar mais ainda essa tua arrogância de menina que me colocou uma coleira.

eu prometo que - longe de mim! - eu não vou ficar lembrando de sorrisos, da mordida que dei no teu sorvete, nem da alegria que eu vou sentir no dia que vou te processar perante o tribunal por todo refrigerante e pizza que te paguei só pra ocupar tua boca com coisa que te fizesse parar com esse teu ritual católico de me beijar o corpo de santo em tua parede.

eu prometo, bandida, que nunca vai saber de mim o tanto que penso em ti, que penso tanto que me pego pensando em pensar em ti só para ter um jeito diferente de te pensar, este com método.

prometo que morro antes de te contar o prazer imenso de não fazer nada contigo, de te colocar no banco do passageiro, e te carregar como se fosse o presente de algum rei antigo para outro rei velho que mora do outro lado do oceano: hoje em dia, encaro cada quebra-mola, cada curva da vida como uma dessas ondas de Netuno, e passo devagar porque tenho pra mim, que tirando teu sutiã, todo teu resto é de louça.

eu juro com os pés juntos que vou me apartar do mundo antes de você saber que hoje em dia meu quarto está sempre com a persiana aberta, que deixei o ofício de colecionar sombra por tua causa. que durmo tranquilo tão logo coloco a cabeça no travesseiro, e que sinto teu cheiro todo o dia quando sonho, e quando não sonho, é porque estou acordado pensando em ti.

você não imagina, e nem tem mesmo como saber, porque não vou te contar, o quanto mais feliz já me faz. acordo todos os dias para viver a mesma rotina, escuto as mesmas músicas, visto a mesma roupa, calço o mesmo sapato, leio o mesmo livro. isso tudo é porque ando tão distraído que nem me importo se a roupa tá suja, o sapato desamarrado ou que deabos aconteceu com o personagem, porque minha vida é mais importante que a dele, porque eu tenho você, já ele, ele mora em papel.

eu cumpro o que prometo, e nunca vou te dizer nada disso. poderia até dizer muito mais do que nunca vou te dizer, por exemplo, da preguiça que tenho das outras meninas, do prazer e orgulho que tenho de te apresentar para todo mundo que significa algo para mim. da satisfação que é poder ver a tua doçura conquistando adeptos, e dos tapas no ombro e os apertos de mão que recebo dos outros meninos "pô velho, mandou bem hem?"

oxalá eu morra antes deu te contar algo assim. imagina se, deus é minha testemunha, logo pra ti eu vou dizer do imenso carinho que me brota só de pensar no teu jeito sereno, na tua enorme e doce amizade que me mareja os olhos de tão expontânea, sincera e presente, tão presente a ponto de ter colocado uma pá de cal em cima de todo meu ceticismo e me fazer deixar essa conversa de sexo oposto a mim....

então dado o exposto, eu te peço desculpas, mas não... não tem como eu te dizer nada disso.

motivo? ok:

você já me dá muito trabalho, já me beija demais, já me ama demais, já me fala demais todos os dias o quanto sou importante, bonito, importante, bonito, importante e bonito. se estou de chinelo e bermuda, estou lindo. eu tiro a roupa? "seu corpo é lindo". visto ela de novo, vou pra rua "adoro nossos programas". volto pra casa? "adoro fazer nada com você". ligo o videogame, joga comigo, desligo, você se desliga e deita no meu peito, e me dorme, e me baba, e acorda rindo, pedindo desculpas por algo que imagina que fez de errado, porque ao contrário da vida, você deixa pra fazer tudo errado quando está dormindo, porque acordada, faz da minha vida um sonho.

então, e tendo em vista a nossa saúde (coração é músculo filha, não é esse chiclete que a gente compra depois do sorvete, que a gente estica e joga um no outro, como mais um item das nossas brincadeiras nojentas) eu prometo que não vou te dizer nada disso. quero sinceramente continuar vivendo contigo, e não acordar um dia morto porque meu peito explodiu por falta de capacidade de armazenamento de beijinhos, cosquinhas, piadas infames e noites deliciosas contigo. tenho que preservar-me, e a você também. acredito que vá entender.

era isso. agradeço sua compreensão, e peço licença apenas para o último não-dito: amo, muitas vezes em silêncio e em olhares furtivos de admiração profunda, você.

shhhhhh!!!


"cuidado para não gritar a sua felicidade: infelizmente, a inveja tem sono leve"

Pedro Ayres





























algum tempinho se passou desde que mandei a última notícia. dizem que a vida é o que acontece entre os silêncios: o choro de entrada aqui é o início do barulho, e a morte, o óbvio último acorde. todo o resto é zoada.

claro que eu me cobro alguma satisfação, mas tem momentos que a palavra é prata, segundo lugar no podium, e o ouro vai para quem te encontra na rua e te responde com um "eu? ah... vai tudo na mesma": risinho acanhado, mãos no bolso, e um sorriso triunfal escondido na falsa-modéstia de quem finalmente saiu debaixo da chuva.

claro também que todo dia cobram de mim alguma satisfação: os convites à prática do descaso por quem te guindou à altura de companheiro chovem. para alguns você é besta, sem graça, um rei vestido, sem nada a acrescentar, nem mesmo uma leve fofoquinha. para outros é motivo de comentários dessa gente que exercita criatividade falando do que não sabe. sobram no fim alguns poucos que vibram contigo, e até mesmo te surpreendem te imitando naquilo que você tem de mais chato e tedioso.

por isso, até mesmo escrever está difícil. vou te dizer o que? que tá tudo bem? posso até colocar um adjetivo: está tudo INCRIVELMENTE bem, ou está tudo ESTRANHAMENTE bem, mas isso eu faria mais para te fazer um agrado de alcova do que dizer a verdade. incrível por que? estranho por que? eu lutei e luto a vida toda para isso: sinônimo de vitória pra mim é saber que procuro viver a exata medida de tudo que sei posso ser, sem buscar ser demais, nem me contentar com o de menos. a balança está entre o orgulho e o medo, a temeridade e o receio.

quem aqui verdadeiramente gosta de todos os dias ser obrigado a ser esse "ator social" que os seus arredores exigem que ele (a) seja? quem aqui não chega em casa e sente um cansaço sei lá de onde veio, um descontentamento surdo e insípido, que nem mesmo o gosto de boca-alheia consegue colorir? poisé... ninguém... e todo mundo: gosta porque tem preguiça de sair dessa, ou finge que gosta, ou se diz que gosta todos os dias na frente do espelho, quando chega do circo, maquiagem borrada, e vai tirar a crosta de qualquer coisa que se pintou com álcool e chôro baixinho.

a distância vai crescendo, crescendo, crescendo, até ficar aparentemente insuperável. aparente porque eu acho que não devemos desistir nunca de ser alguém para alguém, mas isso não te coloca na posição colonial de boi-de-engenho, canga pesada no pescoço, arrastando quem quer cochilar. é natural encontrar, como também é desencontrar. deixar ir é talvez uma das maiores virtudes que se aprende na vida: vai filha (o), pega o beco. sim, desapego não é apanágio do descaso, todavia, camarão que dorme, a onda leva, não eu.

por isso, não estranhe esse espaço entre-missivas. eu cada vez mais me torno um desses sujeitinhos de óculos e camisa passada, casaco poído, alpercata, e jornal debaixo do braço num sábado de manhã cedo de quem não conhece sexta-feira até mais tarde. minha luta diária é para adotar a religião do tédio do "cidadão pacato", essa gente grís que você não quer ver nem pintada de cinza-lábio-sem-batom, sabe, de passear com o cocker debaixo do bloco, de dar bom-dia pra tua mãe, perguntar como vai você (apesar de saber que você está em casa dormindo) e mandar aquele abraço. volto pra casa, ligo no treino da corrida, leio o jornal e... ganho um beijo de alguém tão chata e cafona como eu.

era isso. desculpe se de alguma forma eu te frustei com o dito, mas sei que com o não-dito você faz as tuas notícias e continua no teu ofício. peço licença agora para ir, que amanhã acordo cedo, em tempo de tomar café, dar nó na gravata e voltar para sina: fique bem você também!

"Nada mais havia de distintivo sobre estas duas classes além do que já observei.
Seus trajes pertenciam àquela espécie adequadamente rotulada de decente.
Eram, sem dúvida, fidalgos, comerciantes, procuradores, negociantes, agiotas –
os Eupátridas e os lugares-comuns da sociedade, - homens ociosos e homens atarefados
com assuntos particulares, dirigindo negócios de sua própria responsabilidade.
Não excitaram muito minha atenção".

+você, -eu



eu estou há exatos muitos minutos sentado aqui encarando essa parede branca só para descobrir que a coisa mais difícil do mundo é inventar babado para essa saia de pano de costura simples. o barroco é realmente ofício para enfeitar o buraco da bala, reboco artesanal em parede roída pelo desafeto da desavizada: não tem como molhar o bico da pena na tinta que me vai por dentro agora e esperar sangrar outras daquelas mil baboseiras que carpi com rima e método. acho que tua primeira contribuição é desarrumar minha auto-comiseração.

estou há alguns anos andando por cima de um chão de livros, manchando as páginas com a lama dos dias que antecederam a invenção da matemágica, procurando no escaninho das almas uma porção de sujeira, uma mesquinharia, uma promessa não cumprida que me desse aquele alento de desgraça pouca é bobagem, que me fizesse ansiar por cometer todos os crimes, assim conquistando a paz, o gozo de poder deitar sob as telhas do meu chiqueiro, abrigo do sol.

e eis que conquistei a alegria dos de focinho curto: tornei-me o rei da floresta! a sujeira endureceu e me deu a tez corada dos sem-vergonhas e um cheirinho gostoso de cinismo e pura imbecilidade. ria, ria o sorriso largo dos desdentados que não sentem o odor acre do próprio hálito. tinha um só pudor: o de guardar o cetro dentro da calça, que afinal... eu devia respeitar algumas convenções.

então, para tornar longa a curta história do curto, eu era a besta, a fera. alvejado? sim. ferido? sim? morto? não, mas fazia questão de enfiar o dedo no buraco, e o orgulho ferido que vazava eu usava pra escrever mil nomes nas mil paredes que me esfreguei: andando por aí, eu nunca me perco. era formiga, ou coisa pior.

agora vamos virar a página.

você apareceu. eu tinha visto, melhor, eu tinha ouvido alguma conversa de jaula aberta, dessas que os filmes retratam, que o aparecimento de um grande amor funciona como a sulfa em ferida da segunda-guerra: estou redimido! aparei o pêlo e pela primeira vez em tempos bebi água na tigelinha. de resto, fiquei ali catolicamente parado, esperando a minha nuvem.

não veio. mandei telegrama pro céu, cutuquei o anjo com vara curta, e recebi de retorno uma bofetada, dentro do templo, que me jogou em cima da minha banca de antigos negócios: eu ainda era acionista majoritário no mercado do açougue, e não era porque estava de dieta que isso me habilitava a descobrir a cabeça. fiz isso, e levei no cocoruto.

oscilei. e no oscilar eu enjoei, e enjoando a gente vai vomitando quem comeu. fiquei um tempo assim, com um lencinho na mão, sendo obrigado a recusar as delícias de hoje por conta da bile de ontem que me fermentava as entranhas. depois de um tempo, melhorei, mas o feito estava estragado: agora eu tinha que me comportar.

foi aí que eu virei a página, de novo.

você reapareceu. e aí entendi que você não era um anjo, ou uma nuvem ou um guindaste para me tirar da pocilga: você era a chance. não era uma princesa ou uma senhora de mil feitos, ou mesmo um príncipe dentro da tua armadura de seios fartos e lindo sorriso. você era como aquele ideograma chinês, com o qual eles escrevem "oportunidade". você não tinha espada, você nem mesmo consegue escapar de mim quando eu te prendo nas pernas e te puno com cosquinhas todas as tuas malcriações do dia. você não tem escudo, até mesmo que o teu peito é como o dia que vai começar amanhã, onde nada está, mas tudo pode ser escrito. você não é: simples, não é, e não era mesmo para ser. o cuidado e o trabalho estão comigo.

eu que tive e tenho que ser alguém para poder viver você, a chance. não aproveitando a oportunidade, ela passa, e com ela você. ajudar-me a entender isso é a tua segunda contribuição pra mim. por isso, não se cobre, não se culpe, não espere, não antecipe: você é uma letra escrita, já está, é. eu sou por fazer, por construir, por viver. por querer, vou atrás, e na frente vai você, sorrindo e fazendo piada das minha chatices, enquanto solta esse perfume de planta (que não é bicho), amiga do sol.

era isso que queria te dizer. como disse lá em cima, não tem como fazer floreio com tinta fresca. você é como um função, equação ou fórmula muito bem resolvida: linda + linda = cada vez mais linda. eu cada vez + me sinto + feliz de poder ⁄ a % da vida (que antes de você era ∅) que me cabe contigo.

obrigado por tudo, obrigado por ter me ajudado a pular de reino na natureza, e principalmente, obrigado por ter introduzido o cálculo racional e o senso da importância do agora, na minha vida. vou te ser ∞ grato.

nãobrigado.






























eu fui treinado pra acreditar em um tanto de coisa que nunca me disse respeito pegaram minha mão ainda pequeno nessa arte de te gosto e me largaram com uma professora que vivia se queixando dos meus pés que nunca tocavam no chão e da concepção que ela tinha de minha beleza como uma dessa promessas de um futuro que nunca ia chegar como plantinha sem sol na varanda nunca fui educado para olhar para o lado e perguntar do horizonte por trás do sol que queria dormir eu aceitava tudo de bom grado porque todos os dias era a mesma ladainha sou o melhor que pode te acontecer ia pra casa e olhava pra mãe e dizia pai não tá certo e ele concordava comigo e eu ia dormir e sonhava com a professora que dormia no peito como uma poceira com aquele sorriso enigmático no rosto de quem ia me furar até eu não ter mais fundo até que teve aquele dia que fique só no portão da escola e todo mundo me contava mentirinha de férias e eu acreditava que tudo ia voltar ao normal assim que passasse o calor mas não passou e eu acabei ligando pra casa e pedindo pro meu pai me pegar minha mãe fez chá nesse dia lembro bem que eu fiquei triste mas ela disse que era normal que eu tinha crescido e que agora ia para uma outra escola mas eu não queria saber disso cadê a professora do sorriso de picareta e minha mãe desligou meu telefone e disse que ela tinha ido morar em algum outro lugar que agora era verdade e não era mais mentira acabou e eu perguntei do que tinha sido feito da outra verdade que era verdade não era foi ela que disse a professora mas meu pai disse agora eu ia pra uma escola melhor e eu fiquei sem saber o que fazer e quando a gente não sabe o que fazer a gente chora até que a solução escorre do olho bate no peito e aí a gente pensa tá tudo bem e compra a farda nova e volta pro pátio compra cachorro-quente que já não basta mentira ficar com fome é pior ainda né aí veio a prova monte de professora nova que agora eu tinha cabelo na perna e a voz engraçada e me diziam que gente assim precisava de um monte de outra pra ensinar ele e eu disse ok e a água do bebedouro tinha um gosto gozado e me deixava engraçado também rindo sem ser feliz e abraçando quem eu não queria abraçar e no outro dia acordava ruim mas tinha que me levantar logo e nem podia ficar na cama sentindo aquele gostinho de cadáver na boca e a vontade de explodir a cabeça no interruptor que ligava a luz maldita luz que doía meus olhos e ia pro chuveiro lavar do corpo o cheiro que a professora de ontem me deixou dava bom-dia pai bom-dia mãe tô bem a escola é ótima aham tenho estudado até mais tarde queimando pestana e alegria que nem azeite vagabundo de acidez alta e pegava minhas coisas e assim começava e terminava mais um dia aí resolvi começar a matar essas aulas pra ficar em casa não conseguia estudar disseram que era coisa de menino que logo passa mas não passou e eu fui ficando mais assim e cada vez menos o que todo mundo queria que eu fosse inclusive a professora com sorriso de buraco em mim levava minha água de casa não bebia mais do bebedouro da escola que tinha tido hepatite fiquei mal e se não fosse minha tia nem tava aqui tava com aquele gosto gozado de formiga capim e morte na boca que fica depois que a gente bebe muito a água que poceira outra abre pra gente

e aí foi num desses dias de tédio e video-game que eu resolvi abrir a porta de casa e mudar de escola: começar tudo de novo

aos poucos fui reaprendendo a ser devagar de novo, a fazer pausa, uma atrás da outra, e readquirir de novo meu passo lento de casco partido. Comecei a prestar atenção na beleza do simples, do bem colocado, do bem dito, mas principalmente do bem sentido e vivido. Uma nova elegância foi aparecendo pela fresta da janela, e a calma de trânsito da madrugada espantou o sol que me deixava agoniado. Com isso eu me entendia melhor, e por consequência você começou a me entender melhor, o que me deixa feliz: e foi assim que eu dei o último beijo na mão do chicote, e foi assim que você parou de ouvir falar de mim.

E quando eu larguei esse vício de achar que a vida é uma tela impressionista, que beijei a minha cabeça com a boca cheia de coração, o coelho pulou da cartola para o meu colo, se tornando um desses caros amigos peludos que nos oferecem suas largas costas para que possamos descansar as palmas das mãos, e mesmo que eu teime em não sorrir, ele se enfia no meu peito, e todo mundo está cansado de saber que o efeito de bicho de chapéu a caminhar por dentro de si é o mesmo de um esfregão no chão molhado da minha cozinha.

Não existe verdade pronta, não existe uma professora, nem mesmo várias. O que existe é você, eu e toda uma matemática absurda de asa de borboleta. Nunca se deixe levar por quem e pelo que dizem que você é, nunca acredite que o horrível é a medida do que te completa, a infelicidade é tudo que você pode ter, e que teu fingimento é o teu ponto G. Se eu posso te dizer uma coisa, se algo escorre de mim pra você meu irmão, minha irmã, é que a capacidade de mentirem pra ti é muito menor que a capacidade de você mesmo se colocar pra dormir: é teu todo engano, Dâmocles. Carregue sempre contigo caderno, pena e sonho e nunca deixe que ela te ensine o que nem mesmo ela quer para si. Que teu sim seja sim e teu não o fogo que consome a cera das asinhas da desavizada.

Dito isso eu me reservo o direito maior de torcer por ti. Liberdade é apanágio do pé-descalço na areia do teu quintal: entra quem quer e quem é criança. Que a nossa inocência seja o brinde que abre toda essa festa, mas que ao fim os embriagados sejam os outros. Não sei de ti, mas algo que odeio é acordar com uma dor que não é da minha cabeça.

Janela aberta não chama chuva, e só tem medo dela quem acha que verniz é item de decoração em casa alheia. Ouse, e tchau!

Terça-Maior




eu queria poder te escrever alguma coisa. eu queria poder sentar aqui, colocar um papel de parede rosa e te escrever uma dessas cartas cheirosas que começa bem e termina melhor ainda. eu queria pode te contar como foi o dia de ontem, deixar o coração fazer fofoca, falar das nossas vidas passadas, e trocar presentes todos os dias, comemorando toda semana o aniversário de algum dia que estivemos juntos.

eu queria a simplicidade dos teus 18 anos, da porta do bar, de rir do teu ex-namorado e dançar abraçado contigo num ritmo que só você sabia. de sentar no banco de trás do teu carro e te ver soltar o volante para tocar uma música pra mim, fazendo isso que você sabia fazer tão bem, que era abrir mão do controle das coisas pelo prazer de nos ver sorrir. de te ver sem graça porque eu achava graça do teu pé, que era o caminho pra tua mão. de te pedir sem medo do não, e te beijar para receber na tua saliva o único combustível que me faz realmente ser otimista, e achar que a vida é uma viagem, e todas essas outras baboseiras as quais você é síntese.

eu queria a simplicidade dos meus 22 anos, da minha austeridade recém-comprada no mercado da esperança. do meus graus a menos de miopia, da minha nitidez em te enxergar no meio de tanta gente. de não ter que pensar em ter nada e receber tudo, de ser um conjunto, uma banda, metade de quem não pede licença. de tomar chá no quinto andar, de olhar a lua e de morrer na rua quando me despedi de ti para ir bem ali, e de ficar de luto durante um mês, sentindo-me o mais infeliz dos sujeitos porque o mundo não parou enquanto você não estava ali.

eu quero muita coisa, mas o que mais quero é o poder de reconstruir um instante. de olhar pra cima e ver uma nuvem em forma de perdão sobre a minha e sobre a tua cabeça. de sentir de novo o delicioso descaso por tudo que não seja a mão dupla dos nossos sentimentos. de não me importar mais com ninguém, de ter pouquíssimos amigos, de acordar com o teus problemas dormindo do lado dos meus e deixar que eles se deem "bom-dia" e depois discutam por alguma bobagem. esta paz de agora, essa pax mundana, é das mais corrosivas, que te passa aquela falsa idéia de tranquilidade de mar demasiado salgado ou demasiado doce. sinto falta do vento.

eu queria nascer de novo, e não tem nada na vida que quero mais. se você soubesse o tédio que eu sinto de tudo que não é a tua risada, da preguiça de tudo que não é você correndo descalça... claro que vou vivendo, e vivo e vai ser assim se assim é, mas já tem tempo que sinto essa fome de bolo com recheio, de pizza de massa alta com um queijo que me escorre pelas bordas. sinto falta de extravasar, da extravagância que só o excesso de amor causa, de falar que te amo com a boca cheia de ti e morder minha língua tentando te engolir.

a terapia do tempo com as outras vivendo os prazeres já não funciona. a temporada longe de ti, e pior, o tempo longe de mim só me deixa com mais sede. doutor pode falar que sim, e doutora falar que não. amigo pode dizer "não vai bem" e amiga dizer "que lindo!", enfim... no meio disso tudo está a certeza, a única que eu tenho nesta vida, que o que eu sinto por você é feito e constituído de matéria totalmente independente de Freud, eu, ou a menina.

nunca pensei que gostar muito de alguém podia vir a ser uma maldição. dessas de livro clássico, que protagonista arrasta como correntes pesadas, carpindo uma mentira, fingindo que não é dor a dor que deveras mente. não sei se devia chamar de maldição, ou se essa a minha benção, o meu norte, o que me guia para fora da piscina alheia.

eu gosto demais de ti. há quem ache que isso seja algo linear: gostar + de ti = gostar - de mim. bem, eu gosto muito de mim, mas gosto mais ainda da pessoa que sou quando estou contigo. existem pessoas que têm esse poder de nos fazer melhores só pelo fato de existirem. tenho pra mim que cada vez que você respira, é uma oportunidade que eu tenho de desvendar uma verdade fundamental ao meu respeito. sempre foi assim, vai ser assim sempre.

hoje não quero falar de amarguras, nem da saudade, que não sou viúvo de gente viva. queria apenas te lembrar do que você também já se esqueceu: que eu te amo verticalmente, como um desses raios de Prometeu, e horizontalmente, como quem te venera como a mulher mais linda que um dia se fez carne e suspiros.

e para todas as outras que não são você, fica a minha declaração honesta: de que nunca fui nem vou conseguir ser o que sou aqui, em cada entrelinha do que disse, e no que a ninguém interessa, além de nós, saber...

Deixa, que essa fase é passageira, amanhã será melhor
E você vai ver que a cidade inteira seu samba sabe de cor

casa de Hefesto, espeto de pau























chega aquele momento que toda aquela dor enorme que você fabricou para ser o teu porto-seguro que te protege do dia calmo que é ser melhor acaba.

você olha pro lado, e não tem ninguém, e isso bom porque te diz "livre" como as folhas sem cola do teu livro velho. olha para trás, e não tem mais ninguém, e isso bom porque diz "raiva" e ela é a tua carapaça, como a do escaravelho que rola imundíces para um lugar futuro. e aí você olha para frente, e também não vê mais ninguém, e diz "nada", porque nada é o que se diz quando se constata que de desertos se colhe a sombra da tamareira, arremedo de oásis.

hipócrita. no fundo é isso que você é. quem te ouviu falar na rua as tuas verdades de entre gole e outro te acha uma dessas caixas de pandora vazias, agora domínio da ingenuidade e da candura. mas as coisas não são assim, ou pelo menos deviam ser se a coerência tomasse o lugar de afrodite na tua cabecinha que adora a melodia clássica do adágio do ontem e sempre.

constrito pelas leis internas do teu proceder. prisioneiro da maneira tua de agir consigo e com os outros. vilão do teu faroeste e herói em macunaímas dos outros. não, quem te fala isso não é a voz do pastor ou da cabra senão os retratos mesmos da tua galeria dos rostos sem nome, que todos os dias te acalentam com esse jeitinho doce de quem te quer Dorian Gray.

um níquel pelos teus pensamentos, que eles estão aí, soltos: nunca foi tão fácil ter o fácil sendo fácil. nunca a confusão foi tão regra e o caos uma conversa como hoje, como tu. o absurdo chega ao máximo contigo abraçado nele, como mãe-escorpião que carrega nas costas suas crias pontiagudas. do teu ventre derrama esse sémen viscoso, semente que nasce morta e das tuas entranhas eu me escorro para um esgoto qualquer, lar de todos os rejeitados, esquecidos, bêbados, loucos por um afeto, um útero, um ventre, um amor, uma vida...

e aí eu vejo você. é nesse momento que eu vejo você. quando o errado nunca deu tão certo pra mim é que eu vejo você. e por um momento eu paro, e por um momento eu lembro, daquele tempo, do meu tempo, de quando havia tempo. de miletantos anos atrás, de miletantos corpos nos quais eu me escondi atrás. e lembro que um dia eu fui Pandora, fui menina-chave, com a diferença que não tinha me enfiado em fechadura alguma alguma, não tinha libertado tudo isso que eu achei que sequer, em mim, existia. eu ainda acreditava no que acreditava, e rezava para os deuses da hora. eu dormia abraçado com uma verdade parcial de cada vez, sabia o sentido de encadear as pequenas mentirinhas e sabia tirar o noves fora daquilo que não me servia. antes desta regressão toda, antes do desespero e do medo do dia com sol, eu cheguei até a namorar a Tempestade: ela foi minha Maria, e eu Seu José.

todavia... hoje, eu sou a caixa: uma vez aberta, não serve, fecha-se de novo. libertei quem queria sair e saiu fazendo ruído, na rua com os outros, sem me deixar dormir. acabei acostumando com o barulho até que fiz dele profissão. noite após dia eu, Hephaestion, martelei na carne dura certezas moles que se descolavam ao som do chicote de cima. fechei, e fechado pensei que seria como a concha, que do stress dos outros faz-se pérola, mas que nada! ao fim, nada pasmo, constato que toda essa conversa me rendeu apenas mãos que se mostram tão solícitas em me ajudar a lustrar e manter o brilho desta armadura de ouro de tolo a qual me veste.

e aí eu vejo você. de longe pareço fogo, de perto... sou o ferreiro. eu não sei o que dizer, ou se devo ser ou não, ou seguir, ou ir, ou ficar ou estar lá, longe de qualquer coisa que me tire do conforto de quem não é. eu que condenei e condeno à covardia nos outros, vejo em mim a forja ardente do que sei que posso, e a chama fria do que sei que devo. e aí ficamos nessa conversa: eu, você, o resto dos viventes... que abstrair é uma boa forma de se escusar: "ah, mas não sou só eu!"

não sei o que vai ser de amanhã, mas parece que a chuva chegou. vai ver ela lava a rua, a lama, e com os esgotos entupidos suba esse cheiro de faça alguma coisa. pretendo e até quero, mas o que tenho para garantir agora é que vou, mas não sem luta. reze por mim, ou não, no fim, o meu fim sou eu mesmo.

sendo o bastante de tudo que me diz respeito, resta-me subestabelecer a vida naquilo que procuro.

athina




I

eu lembro do dia que fui dormir na noite anterior de tudo isso. eu lembro de estar no deck azul do navio, cruzando o adriático, sentindo-me não como o filho do rubicão, mas como um saudoso apátrida que subitamente recebeu em casa o perdão de toda sua nação. eu lembro daquele deck, do frio da noite, do último vento itálico que me soprou no rosto enquanto eu tomava lentamente o último gole daquela cerveja que amansava meus sentidos super excitados. lembro de olhar pro mar e receber de volta um beijo do reflexo da lua que batia no meu coração como o toque das mil mães que tive, o branco reflexo que era como aquele leite que tantas vezes tomei, ávido de vida.

eu andei lentamente, até a minha cabine. deixei o deck azul e fui até minha cama, e como odisseu, eu dormi, ouvindo o ronco suave do monstro de ferro que me tinha na barriga, dormi o sono leve de um não-Jó: sem as angústias de quem não se quer refeição.

foi quando tive um sonho. sonhei que estava na hélade, de contornos confusos na minha cabeça, imagens rápidas, incompletas, que informam e riem de ti, que é como são os sonhos. e no sonho eu vi athina: a deusa vinha até mim, alta, loira, majestosa e me dizia em grego-idílico "nos encontraremos". e por um tempo eu quis conversar com ela, quis segurar ela mais tempo comigo e não consegui. tudo que consegui foi sentir a certeza que algo me aguardava, que tinha algo para vir, alguém, não sabia... não sei.

cheguei e o barco aportou. alegria, imensa. era o retorno pra casa, onde eu me comecei. o peloponeso, corinto, os séculos e milênios amontoados sobre meus pés. a história veio me receber em pleno porto, para me ensinar os rudimentos da língua que tinha esquecido. o caminho, e de tarde chego à cidade-mãe-de-todas-as-cidades: athina, deusa majestosa, empoleirada sobre o mármore e o conhecimento. tudo em mim vibrava, como se o útero do mundo se abrisse e de dentro dele eu saísse para uma vida de novo, de tudo novo.

da janela do hotel vejo o parthenon. final da tarde, linda, resolvo logo ir. chego, ando, sorrio, alegre, demasiadamente alegre, o inacreditável se realizava, eu estava ali, ali mesmo, não acredito. quando o cansaço é maior e quero ir, na porta vejo essa moça: loira, alta... a conversar com os cães vagabundos, os adotados dos deuses. eu me aproximo, surge o ensejo, conversamos. um café? um vinho? pra que ir?


II

nenhuma poesia te cabe, nenhuma frase te comporta. você é a mão que abriu a porta de um rio que eu há muito queria ver transbordar em mim. conhecer você não foi fruto do acaso, nem brincadeira do destino: foi um desses desatinos, calculados pela mão risonha do artífice, gepeto dos meninos de madeira como eu.

eu tento pensar pouco em ti, porque o que vivi contigo foi algo que se vê nesses filmes bobos, que todo mundo acha bobo, todo mundo ri porque é bobo, mas o mundo quer ver em si. eu vivi isso, da primeira hora que te vi até a hora que te deixei no metrô com a promessa de que ia correr atrás do teu avião, um dia, que nós encontraríamos, cedo, tarde, mortos, vivos, não sabia...

não sei.

meus dias são feitos de esquives e fintas que dou nas lembranças disso tudo. você literalmente é um sonho que se corporificou, e eu não sei o que fazer com essas coisas. eu me alimento de outra matéria, o passado para mim é minha plantação de espinhos e feridas que cutuco para sangrarem o esse sangue que pinto esta tela. mas você, você é a contradição disso tudo, porque você foi e é doce como a fruta que roubamos na igreja perto de Delfos. essa que foi a tarde mais maravilhosa da minha vida, com uma pessoa que só me encantou do começo ao fim.

foram alguns dias juntos, alguns dias vivendo como que dentro do espelho, sem alice, sem coelho, sem loucura, com medo da mão que ia escrever "fim". depois de todos os anos, longos anos tentando curar-me de velhas feridas, você veio e com a tua mão chegou onde ninguém tinha chegado. nem mesmo a outra que gostei tanto, nem a outra, nem a outra, nem.

não me sinto infortunado de não estar contigo. lembro dos teus sonhos também, comigo, cheios de significado. penso neste oceano enorme que nos separa mais os km's da terra que tenho que cobrir para colocar as pontas dos dedos nos teus cabelos e sentir a vertigem que senti de estar perto de ti. de ouvir a tua imensa inteligência trabalhar, de me ensinar os rudimentos das cinco línguas que fala enquanto ria das minhas piadas bestas, porque quando eu gosto eu deixo de ser madeira, e acabo ficando só menino.

só. eu tentei pensar só em mim quando você foi. você me chamou, eu não fui. não consegui, não consegui por vários motivos, o maior foi não saber o que fazer mais. eu me sentia derrotado pelo golpe mais leve que tinha levado em vida. quando eu penso no teu sorriso, na flor que te dei, quando eu penso, e eu só posso pensar, eu sinto o peso dessa realidade que não somos nós, e apesar de calmo e triste, eu tento ter a confiança que pode e não vai ser sempre assim.

talvez eu te veja de novo. daqui dois ou três anos, daqui uma vida. eu não sei. não penso nisso. você é vai continuar viva por aqui, por tudo que representou e representa. te conhecer já foi um privilégio imenso, e seria egoísta da minha parte pensar em algo além disso. mas fica a promessa de seguir aquele avião, e desta vez, estar do lado de cá de quem chega, não do lado de lá de quem fica.

obrigado por tudo, minha sempre querida. obrigado pelas noites maravilhosas, pela noite na taverna, pelo vinho, pelo piano, pelos olhares doces e o beijo que selou as palavras do grego que nos uniu, na religião ortodoxa do bem querer. guardo tudo isso comigo, como quem entesoura as sementes raras de um perfume antigo.

ephkaristó, minha querida, hoje e sempre.

fauno no espelho (II)
























(I)

quem sou eu?

eu sou uma fraude. onde venho chamam-me "monstro", quando sou apenas vontade e libido. eu sou a pulsão, o não e o sim. não tenho pé mas tenho mão, e não preciso do silêncio de meia em casa, porque chego sem cerimônia sempre quando a festa está ao meio. eu não peço que celebrem, mas sou o último a sair, porque é o do meu ofício limpar todas as taças por dentro.

eu não me depilo e nem tenho esses pruridos de máquina azeitada. dos ébrios eu sou o mais comedido, e não perco meu tempo nem incito condutas extravagantes que derramam ouro e estragam o vinho que adornam os lábios das minhas mais belas cortesãs. eu sou bicho, ídolo dos pastores de ontem e hoje que me querem sempre junto em seus dias de folga. eu nada condeno nem também sou o redentor de quem se é sozinho. sou filho da cabra e do homem, num desses coitos escondidos entre a natura e a filosofia, essa também outro bicho, muito menos domesticada do que eu.

na falta de mais, eu sou menos, e na curteza das coisas eu sou o exagero. não sou culpado de nada que não seja ser o que você é.

e quem é você?

eu sou sim, o grito do não. eu sou a extravagância do bicho, monstro depilado de mãos horrorosas. eu sou filho da filosofia e do cálculo, o dedo que cala a cortesã. sou ídolo solitário dos redentores escondidos. eu sou filho do tempo, da morte e tenho medo da vida. ando com os pés calçados, quase-cascos de tanto que me acostumei a não sentir mais o chão. nunca chego a tempo de festa alguma, porque faço questão de não me convidar para nenhum bailinho, receio do ridículo, receio ridículo de quem não é cabra.

eu sou uma verdade, pronta. nasci feito, de pai e mãe e barriga lisa. não tenho do que me envergonhar porque não tenho com quem me envergonhar. sou cortesã de um rei cego, que come ouro e vomita as minhas tripas. meus cabelos andam soltos, domesticados pela chapa de cerâmica e o olhar da outra burra que nem eu. apesar disso, não sou bicho, porque tenho as orelhas curtas e um jeito de pensar menos longo ainda.

sempre menos, nunca mais, do exagero sou o basta. sou culpado de tudo que não seja a alegria de ser você.


(II)

falo eu, falo o fauno.

eu sou o espelho de todas as coisas
eu sou o limite de nada
eu sou o fauno, eu sou o falo
gigante protuberância
de carne e músculos
e vontades e pulsões

eu sou o retrato de todas as sociedades
sou dos seus membros, o fluído
que escorre em vida e negação dela
na dor das filosofias de outrora
nas culpas das hipocrisias de sempre
esquecidos que eu também sou,
de todas, a mais antiga
das religiões

eu sou o fano, eu sou o falo
mas eu também nada falo
porque me calaram
e me colocaram montado
e ferraram meus cascos
e hoje adorno as vitrines
e causo os risinhos escondidos
das moças que viram uma foto minha
numa dessas magazines
perfumadas de incenso
odores fabricados
de dinheiro e mato de mentirinha

apesar disso tudo
eu ainda sou o fauno-rei
todos os anos eu ainda morro
só que agora sou sacrificado
em cima da cama, na caixa de concreto
em meu nome violam as moças
violam os valores
violam a alegria
chamam-me sexo, esquecidos,
essas toupeiras eletrônicas,
que eu sou da carne, mais que o sangue
sou do sémen, o que nada
sou vida

ordeno eu, ordena o fauno
que em meu nome sejam todos os dias
sacrificados um sem contar
dessas emoções banalizadas
que morram todas, de uma só vez
porque quero nascer, no ano que vem
entre os pastores e suas filhas
quero derramar vinho em seus seios
e colocar minha língua em seus ouvidos
quero rir o riso de ontem, ao falar do que é hoje:

quero fazer de vocês todos lenda
subvertendo a ordem de tudo
bibliotecas de cabeça pra baixo
quero ver como se sentem
sendo vocês também
mitologia


(III)

falo eu, falo
falo eu, o falo
falo eu, não falo
falo eu, e só eu falo
falo eu, sou eu
não o falo, eu
não falo, o falo
fala, e eu
me calo


(IV)

fala ele, o fauno
e diz o que eu esqueci
ele sou, e eu, não sou o falo
sou mais que o sémen
que eu derramo em teu colo
sou mais que o ventre
ao qual me atiro
aos milhões, bilhões, nem sei ao certo:
é do crime essa capacidade de escorrer
de dentro de mim, pra dentro de ti
de dentro de ti, para algum lugar
que não sou eu


(V)

falo eu, o fauno
eu que sou o espelho de ti
não me negue, não se negue
que eu sou o arqueiro,
aljava e flecha-certeira
mira alta, teu coração

falo eu, o fauno
o ascendente, a alegria
o riso ao fim do dia
a cerveja no copo, a amiga no corpo
que isso tudo também é
e fruir não é o teu crime
mas não viver

falo eu, teu falo
teu amigo, não o mais caro
falo eu, não você:

você é o fauno

dito isso
me calo.

Oh! teaser love



as coisas acabam, acabam sim. acabam desse acabar de busy call, modo silencioso, de te evitar na festchinha, de conversar com tua amiga mas não contigo. acabam de tomar pílula de invisibilidade, de andar de moonwalker pela madrugada afora, rewind no pneu do teu carro, criando descaminho e descabido, e por mais que tu fiques moooooorta de indignada... acaba filha, acaba desse acabar.

o mérito não é só teu. é teu e do teu jeito, e do meu também que não tem nada a ver com o teu. coisa da crença e a boa vontade que nasce dessa crença, que é fruto da teimosia de quem tem berço, pai e mãe bem casado, filhos criados, boa nota na escola: ahhh, o que seria do livro de cabeceira se não existisse um tanto de romantismo no mundo? se a vida é espada, é pena também, e a sentença do desaviso é essa raivinha boba e injustificada de eterna adolescência. e contra isso, só o remédio amargo de ficar nua na frente do espelho e chorar aquele choro que só vem quando a raiva passa e a saudade chega e tu te recordas como era bom ter alguém com quem ser infantil e tola: o sofá vazio não reclama de ti quando você muda de canal.

mil coisas devem passar pela tua cabeça todos os dias, e para todas elas tu tens a resposta de ficar de bico. o lance é que, de longe ou de perto, eu não ligo! esse número já foi bem ensaiado por gente antes de ti, e eu mesmo fiz o favor de ser palhaço no picadeiro das coisas que me competem, quando devia ter tido a dignidade de dizer "já vou tarde". eu tinha essa mania de me achar guerreiro quando era apenas um desses cachorros pequeninos que acham que cravar o canino em algo lhe dá direito eterno de posse e usufruto. com o tempo meus outros dentes cresceram, e também caíram, e assim roer osso deixou de ser um esporte, e se tornou ocasião.

por isso eu largo tua canela, e no lugar dela me dou o mundo. eu abro a janela e vejo aquela bola laranja no céu (G, na música) que religiosamente se coloca sobre a minha cabeça e me queima o que resta das teimosias de antanho, tu inclusa. e ao dizer tudo isso, espero que você experimente a satisfação de ter estado certa o tempo todo: ao final, o teu pessimismo, desconfiança et caetearas congêneres são os vencedores. e como vencedora e mulher independente que é (sempre foi, lembra-me uma das vozes que andam pela tua casa) agora és duplamente livre, porque não me tens mais a arranhar o canto dos teus (i)móveis, nem a roer de criticismo os teus sapatos, ou melhor, teus tênis, aos quais jurei perseguir eternamente.

ao fim, quero que saiba que não digo tudo isso por raiva de ti, nem que eu ando por aí te evitando porque tenho 18 anos. não, na verdade eu experimento uma gastura de tudo que houve, do acontecido, sucedido, e também do não dito, omitido e mal falado. não tenho nada contra tua pessoa, mas de chatice já basta a que eu me auto-imponho todos os dias, no exercício de ser eu mesmo. não quero ser cruel também, mas a licença que tenho da poesia me dá essa liberdade de escrever só para que tu entendas: para o resto do mundo, tu não passas de lirismo. fique tranquila.

um recado? claro! e um obrigado também! obrigado por me mostrar o tanto de coisa errada que tenho que consertar comigo ainda, o tanto que eu posso me violentar me colocando em situações que claramente estão contra mim desde a segunda hora (a primeira, tu o sabes, tenho nada o que reclamar!) obrigado por ter despertado em mim um senso de dignidade e a calma de saber que a pessoa certa para a gente é a pessoa que reflete o momento que vivemos. por isso, mea culpa também querida: tudo que eu disse acima para ti, se aplica para mim, porque tu estavas ali apenas refletindo os raios que emanam do prisma que eu descolori por cinismo e falta de fé em mim mesmo.

agora eu corro de você, e você, claro, corre de mim. eu não estou em nenhum tipo de jogo contigo, eu apenas estou tomando um rumo diferente para mim, minha vida. daqui a pouco você me esquece para sempre, e no futuro eu vou ser apenas um daqueles carinhas que se fala mal pro então-amor. eu estou em paz com isso, e fique à vontade para confidenciar as minúsculas parcelas daquilo que me torna enormemente pequeno. mas fique fria que da minha parte eu só carrego o que de grande você me trouxe, porque eu posso estar sendo grosseiramente sincero agora, mas não sou ingrato.

fique bem, que ao contrário dessa música que triste ou acertadamente foi nomeada como "nossa", nenhuma lágrima você me fez derramar, pelo contrário, guardo com muito carinho as gargalhadas sonoras que dei contigo. anos e anos que eu não me divertia e RIA com uma mulher assim (como você)....

but i'm sorry, i don't pray that way

Not (ever) to be (next)



Naked as sin
an army towel, covering my belly
Some of us weep, some of us howl
Knees turn to jelly
But Next! Next!
I was just a child
A hundred like me
I followed a naked body
a naked body followed me
Next! Next!
I was just a child when my innocence was lost
in a mobile army whorehouse
a gift of the army, free of cost
Next! Next! Next!
Me, I really would have liked a little bit of tenderness
Maybe a word, maybe a smile, maybe some happiness
But Next! Next!
Oh it was not so tragic
and heaven did not fall
But how much at that time
I hated being there at all
Next! Next!
I still recall the brothel trucks, the flying flags
The queer lieutenant slapped our arses
thinking we were fags
Next! Next! Next!

I swear on the wet head
of my first case of gonorrhea
It is his ugly voice that I forever fear
Next! Next!
A voice that stinks of whiskey
of corpses and of mud
The voice of nations
the thick voice of blood
Next! Next!
Since then each woman I have taken into bed
they seem to lie in my arms
and they whisper in my head
Next! Next!

All the naked and the dead
could hold each other's hands
as they watch me dream at night
in a dream that nobody understands
and though I am not dreaming in a voice
grown dry and hollow
I stand on endless naked lines of the following and the followed
Next! Next!

One day I'll cut my legs off
I'll burn myself alive
I'll do anything to get out of life to survive
not ever to be next
Next! Next!
not ever
to be next, not ever...................

pétala (com acento)



somewhere i have never traveled, gladly beyond
any experience, your eyes have their silence:
in your most frail gesture are things which enclose me,
or which i cannot touch because they are too near

your slightest look easily will unclose me
though i have closed myself as fingers,
you open always petal by petal myself as Spring opens
(touching skilfully, mysteriously) her first rose

or if your wish be to close me, i and
my life will shut very beautifully, suddenly,
as when the heart of this flower imagines
the snow carefully everywhere descending;

nothing which we are to perceive in this world equals
the power of your intense fragility: whose texture
compels me with the colour of its countries,
rendering death and forever with each breathing

(i do not know what it is about you that closes
and opens;only something in me understands
the voice of your eyes is deeper than all roses)
nobody, not even the rain, has such small hands



e.e.cummings (via mari messias)

Leocádia




esta noite eu viajo
por longos e infidáveis caminhos
por infinitos de anos e vidas, esta noite
eu viajo

eu abro o peito e dele brota uma lua
meio minguante, meio cega
como o sorriso triste e resignado
da amante velha do jovem moço
que sabe que tudo nela é passageiro
o carinho, o toque... um beijo
tem o sabor rançoso de uma porta fechada
ou de uma saia que não mais lhe cabe

eu abro a mão
e do dedo cai uma direção
uma gota de pele na calçada que me cobre
a timidez do pé descalço
a unha bem feita pela boca nervosa
linhas de uma vida na palma
coqueiros da praia silenciosa
falanges ausentes e trêmulas
decepadas pela lâmina cega
dos séculos de reclusão e egoísmo

eu viajo esta noite, como
ontem eu também viajei e
amanhã vai ser um outro lugar
porque estar longe é que me faz
suportar estar perto

eu passo esse tempo todo
andando para não ter que falar
pois falando sei que paro e aí
eu vejo, como já vi
esse teu reflexo de miragem e
maldição, a cobrir qualquer sol escuro
como cinza de um vulcão
que se recusa a parar de vomitar
diariamente, as verdades quentes
de hoje e sempre

quando eu me deito na cama
é porque estou cansado
e ali deitado eu sou testemunha
de um outro casal, e meu prazer
é o prazer secreto dos que
fazem da fé mútua dos outros
uma tábua de salvação

e nessas horas eu penso que tu pensas
que eu tenho raiva de ti, que tens raiva
de mim, penso no tanto que pensamos
e ainda pensamos, e fizemos e ainda
fazemos, mesmo sem o querer, ou
quando queremos, é um ato tão secreto
quanto a nossa melhor lembrança

cada dia que eu vivo
cada corpo que eu me esquivo
ou que não evito
faz crescer em mim o desejo
mais que forte, sincero
de te dizer o que todo mundo
quer ouvir: a certeza,
não que isso te isente de
determinadas coisas tuas
para comigo, mas de mim para
ti, o compromisso é de te dar
os parabéns por toda essa
beleza cultuada, marcada
na pele, tua, minha, em
suor, lágrima e outras secreções.

Não há nada mais difícil hoje
Do que a simplicidade do afeto
dado e recebido, sem as conjecturas
dos atropelos e perguntas
descabidas. Isso não há, e quando
eu lembro de quantas vezes tua
insegurança me fazia repetir
mil vezes mil o que eu sentia por ti,
eu hoje olho pra mim e vejo que
cada gesto de amor que em ti
escrevi, fez por mim mais do que
todo desacreditar poderia me furtar.

Eu só posso te abençoar
como te abençoaria
o dia curto de uma noite
de janeiro, mais ao norte.

É doído lembrar, mas toda essa dor
é apanágio vivo da tua vitória
e por mais que eu sinta raiva de ti -
e sinto - não tenho como não
reconhecer, que ao fim, magia tua
ou não, eu me transformei algo
melhor que sapo, apesar de não-príncipe,
de teimoso que sou.

Por isso que hoje
eu navego pelas águas turvas
de dias negros, mas tenho como
semblante, a serenidade do porto de
ontem, das risadas do mercado,
as crianças que se atropelavam,
das frutas que rolavam pelo chão
de terra pisada, como sonhos destruídos
que se racham para da casca dura
escorrer uma seiva, e nela
a infinitude de tuas sementes-gestos,
coração em broto de amanhã melhor.

Eu me recuso a te oferecer
qualquer coisa em holocausto
eu me recuso a reconhecer miletantas
coisas, eu me recuso e na minha
recusa está contido o que me há de pior,
logo-lôdo, parte menor e grande
de tudo que sou feito:

Mas quando for amanhã, e
já não for mais janeiro, o calor
vai nos fazer abrir a janela.

Eu vou te dizer: senhora... obrigado,
hoje não digo nada disso, e
contento-me em lamber-me
as partes menos íntimas, que
morro de medo de qualquer exposição.

Entretanto, entre os inúmeros nãos
fica um, o de não me entregar e
não desistir, de lutar e aguentar
e suportar e engolir, lamber o copo
de fel, abraçar a mão da adaga,
beijar a língua ferina, massagear o
coração invisível, e tudo isso faço
como herdeiro do imenso campo
dos girassóis negros - nós dois -
faço como lembrança,
ou castigo...

Espero o dia de entregar este
mesmo campo, renovado em
cultura e lembranças, e então aí
vou deitar, e descansar até que
algum outro uivo, ou uma lua,
despertem-me do meu sono
de gente, e me façam acordar
para o dia dos bichos...



tranquilitudelessness



a moda agora é a de pedir aquilo que não se quer dar. os novos mendigos estão todos ricos e lambem as feridas uns dos outros num imenso ritual antropológico de auto-comiseração erótica.

perde-se a noção do simples, e no lugar dele se implanta uma nostalgia não assumida de que a era dourada do relacionar-se passou. o cinismo é a tônica, o falso dar de ombros, o não é comigo, o estou aqui a passeio. quando não é isso, é o desespero, o querer logo pra agora, o qualquer coisa está valendo, a total falta de senso crítico e amor próprio.

o cenário é dessas savanas africanas, com a diferença que se quer ser gazela quando na verdade se está mais pra gnu com a pata presa na beira do rio sem crocodilo: todo mundo se acha em constante ameaça de um mal imaginário, e as mais tresloucadas posturas defensivas (paranóicas) são colocadas em cena. com isso, os bichos pularam para nossa frente na escala das coisas que vivem, porque enquanto ficamos com medo do que poderia vir a acontecer, eles pelo menos fazem da tentativa/erro sua lógica de vida.

é por essas e outras que toda essa conversa sartriana de cabo da boa esperança não me convence. não acho que o remédio para os vinte anos seja fazer trinta. acho que o que mais há aí é o exagero na dose de remédio, tranquilizante pra cavalo no lombo de gente: contra o frenético, a apatia.

que a poesia me perdoe, mas eu não acredito na tranquilidade. sim, não acredito que tudo se dissolve em um súbita epifania, que mais parece outra dessa heranças malditas do Disney. claro que há o revéz disso, da pornografia como modus operandis de toda forma de se relacionar, que é o outro exagero, mas você se engana se eu acho que a solução está num príncipe com a camisa aberta mostrando o peito cabeludo, ou uma princesa de cinta-liga.

não. a pior desgraça para uma caravela, tanto quanto o mar revolto de corpos, é a ausência do vento, ou de beijo. eu nunca vou conseguir me comportar, minha senhora. eu vou ser sempre apaixonado, por tudo que faço, por todos que toco. não vejo porque deixar de ser assim. não, eu não quero essa sorte de me tornar maduro, ou seja lá qual o nome que você dá para esse amor de persiana fechada e gemido abafado: gostar para mim é compartilhar. eu não tenho medo de errar, de me machucar, até porque é fácil disso acontecer. o que já me assustou de verdade foi acertar, porque ninguém sabe o que fazer quando acerta, tão acostumados estamos a esperar e querer o pior. ninguém acredita que está certo, e o mais grave, não acreditamos que alguém esteja realmente disposto a procurar o centro daquilo que nos move.

talvez eu seja um mentiroso, e no fim das contas, tudo isso que digo é o jeito que arrumei de ser tranquilo. é como acordar todo dia cedo e sentar na beira do mar e começar a não se incomodar com o mar que arrebenta na pedra e te respinga sal na língua. vai ver é isso mesmo, de se apaixonar pelo caótico, de abraçar o incerto, de flertar com o perigo, namorar com o inesperado. de sair de mão dada com o que ninguém imaginou pra ti, e ao final ser feliz, mas não como nos contos de fada: depois do "fim" fica ainda muito pano pra manga.

eu sou feliz como sou, e melhor ainda, faço feliz sendo como sou. todo meu combustível vem do sorriso que arranco, do espinho que tiro, do abraço que dou, do beijo que roubo, do carinho noturno. eu não vou mudar, não vou me tornar alguém melhor, pelo contrário, a previsão é me tornar cada vez mais assim como já sou, até conseguir gravar na pedra do coração de quem amo esse jeito pagão de cultuar deuses antigos, inquietos, humanos....

"Um quietismo estético da vida, pelo qual consigamos
que os insultos e as humilhações, que a vida e os viventes
nos infligem, não cheguem a mais que a uma periferia
desprezível da sensibilidade, ao recinto externo
da alma consciente.

Todos temos por onde sermos desprezíveis.
Cada um de nós traz consigo um crime feito
ou o crime que a alma lhe pede para fazer."
- Fernando

Ouro de Tolo



não, eu não tenho nenhuma tristeza para esfregar na tua cara, nem mesmo vim aqui hoje bater na tua porta, porque a rua é larga e é do meu direito andar por ela, mesmo naquelas noites que o quarto tá quente mas a noite tá fria e você vai pra janela pensar em qualquer coisa que parece comigo mas não é bem eu-mesmo, e isso te deixa contente, porque é bom ter uma mentirinha que ajude a dormir.

eu não vou pedir licença, se o meu nome está na placa. nem vou ficar em casa quando estou vestindo roupa nova e um sorriso que há muito se resignou com o que há. você não é a primeira, e mesmo que fosse a última, ia tropeçar na minha gratidão, porque acabaria por me tirar do peito a dúvida, e ia me devolver de onde vim e para onde quero voltar tão logo pare de estar certo quando tudo que quero é o prazer de ser o último da classe.

é complicado caminhar por sobre a expectativa alheia, sobre olhares desta côrte chinesa que sempre espera de sua majestade um gesto soberano de condenação abrupta, dessas que se guarda na manga da roupa e que devolve o sorriso ao sádico. eu não tenho nada disso, eu não tenho um não, nem um sim, nem mesmo quero estar no meio, como uma espada embanhada. talvez te espante tudo isso, talvez te fruste, eu não sei, sinceramente não sei. eu não passo meus dias procurando atalhos para evitar a grama do que já foi um quintal, mas também não vou caminhar por sobre os móveis dessa sala, muito menos tirar a poeira das porcelanas que com tanto esmero você acumulou.

eu realmente não passo meus dias pensando no que vou dizer quando quero dizer aquilo que queria dizer. eu não gasto minhas horas costurando pensamentos em algum poema antigo, ou dedilho meu violão a dor fabricada do que nada mais foi que um gesto de coragem, do qual me orgulho e muito. cada visita que eu faço no espelho é para constatar que perdi um ano, e que possivelmente serei enterrado num desses caixões que não marcam os ombros nem pesam nos braços de quem o carrega. e quando esse dia vier, possivelmente ninguém que seja você vai saber, ou lembrar, ou se perguntar. você estará em outro país, em outro abraço, em outro quarto... este destrancado (espero eu), com uma janela virada para o infinito e a porta aberta como um olho egípcio, encarando com volúpia um corpo que te quer muito bem.

a única coisa que me dói, se eu posso me permitir este imenso luxo, é ver que tudo que eu disse é marca de dedão na areia, coisa que o mar apaga no primeiro desligar da luz, ou do sol. é de notar no parco noticiário que o vento sopra na minha porta o atavismo da mania de querer ser pior pelo prazer de se ver na pior. às vezes meu orgulho me diz que com isso você quer chamar minha atenção, como quem grita para um garoto de recados as compras por fazer, delegando aos outros aquilo que é responsabilidade tua, a dona da casa. desculpe a crueza desta carne exposta, mas com isso tudo a única coisa que você ganha é a certeza de construir tuas próprias dores, com as quais não compactuo. de longe, eu me compadeço, e de longe vou continuar assistindo a tudo isso, porque cada lâmina que tu cravas em teu próprio peito é um cabo a mais que me impede de te dar aquele abraço, aquele que tu queres tanto.

não preciso te lembrar do óbvio, nem mesmo te dizer que não guardo de ti aquilo que sei que não merece ser guardado. sou um menino crescidinho, isso acredito que tenha certeza. nem perca seu tempo imaginando o que me vai por dentro, porque eu tento ser como filho de plutão e me abraçar à órbita silenciosa como quem abraça um novo credo. sou fervoroso devoto da palavra não dita, e mais do que mania da pedra gelada, isso tudo não passa do profundo respeito que tenho pelo direito das pessoas de serem o que elas querem ser, como elas querem ser, e quando elas assim entendem.

então, como último exercício, ao ler isto tudo, pense que não estou falando de você, porque essa é uma certeza que você não tem. se quer um outro desses meus conselhos, exercite a humildade de se achar especial do jeito certo, do jeito que foi, é, e sempre vai ser, mas não se considere imprescindível. e quando aqui chegar não pense "ora mas veja você, que impertinente!" ou "céus, ele de mim fala!". não, porque cada linha do que aqui está na verdade é a teimosia do que se espremeu entre os dedos e caiu na tela. eu não estou falando de você, porque não sou eu quem escrevo. sou um desses heterônimos que escorrem da mão e caem no papel. de qualquer maneira, fica o recado (dele ou de mim dado), ou não.

final um tanto budista: um texto em que disse tantas coisas para no final pedir que tudo seja nada. sim, é isso mesmo que eu queria. dificilmente eu explico as coisas aqui, mas para ficar bem claro: por isso "Ouro de Tolo", porque nem tudo que brilha se deve levar à boca para tampar o buraco do dente. todas estas letras juntas são para pedir que você respeite em si um pouco o direito de não ter nada, de não ser nada, e de viver o positivo disso. alegria muitas vezes nada mais é que a confusão do barulho, já a felicidade é tijolo na parede.

materialismo-dialético



















sabe, muita coisa que me incomodava já não tem mais aquela força de outrora-bem-que-te-disse, que me queimava a cabeça e soprava no meus tímpanos um sinistro chamado de bem-feito-você-foi-avisado. aquela culpa que me fechava as veias e me impedia de sangrar a sangria do desatino compartilhado também ela se diluiu no copo dos tempos que bebi. é: eu não tenho mais nenhuma grande dor que eu possa usar como espada fresca a me cortar os membros que querem andar. o meu olho esquerdo secou, e o direito também já não faz água.

lá no fundo do teatro alguém seria capaz de ouvir o estampido seco de duas mãos se encontrando e o grito entusiástico ou embriagado de um ouvinte, desses que chegam no meio da cena e gritam um incentivo como que para conseguir a simpatia de quem avizinha o atraso. quem chega no meio da correria pergunta pro do lado: amigo, quem ganha? e recebe uma resposta meio que de pipoca, meio que de coca, e se senta sem mais nada a perguntar. quem canta a letra pela metade runrunruna um improviso só para não passar vergonha, sem compromisso algum com as horas que o artista perdeu emendando uma letra na outra.

teve um tempo que me irritava isso, porque eu ainda me sentia um prometeu da nuvem furtado, estalando em curto circuito e achando que tava cuspindo raio. irritava e por anos eu passei irritado com tudo e com todos porque eu me achava tão cheio de problemas, e o problema do mundo era que eu tinha um problema, logo o mundo devia girar um jeito de orbitar para poder satisfazer meus caprichos de tadinho dele furou o dedinho.

hoje em dia não é assim, mas ainda tenho uma certa sensação residual desse tudo que passou. eu já não choro ela, florisbela, mas dela ficou uma idéia, e talvez seja ela (a idéia) o último desafio que ela (florisbela) te deixa quando vai: ela foi, mas ela fica.

sim, você imaginava ela de mil jeitos e todos os dias acordava dizendo para si o quanto era feliz. tinha ela e ela é tudo ela quer ser tudo ela se faz de tudo e se veste de todas as cores porque você usa um desses óculos da cor-do-arco-íris que te faz ver tudo assim newtonjorgebenjoriamente maravilha: você está apaixonado, ela também, e o mundo no dos outros é refresco, ema ema ema.

e aí, acabou. o espelho quebrou, e depois que você pára de recolher caquinho pra cortar os pulso, e supera a fase dos "por queeeeee" entra em vórtice que te suga pro resto da vida, se não tomar cuidado: do por que meu pai? você transforma florisbela em Amélia, a única mulher de verdade.

a partir daí, toda a tua vida parece uma eterna corrida na qual você está irremediavelmente fadado a chegar sempre em segundo lugar: não importa qual caminho tome, sua forma física, cardio trainning, tênis, ou grossura das coxas. nunca nada vai ser bom, nunca ninguém vai ser bom, nunca, porque o teu primeiro prêmio o insensato destino te tirou, tadinho de ti. você meio que entra num modo automático, e sobrevive: a vida é uma merda mesmo, mas vamos ficando por aí que morrer pode ser uma encrenca maior do que estar vivo.

corredor + juiz + carceireiro = você. quando te falam de agora-Amélia, você romanamente bate no peito e chama pra si Marco Aurélio: mea maxima culpa. dedo em riste, sempre pra baixo. ela? ela nunca fez nada de errado! ela nunca faria nada de errado! ela é uma santa, dessas que se pinta no teto da igreja pra ficar bem longe de mão boba. só que toda mulher usa calcinha, e até onde eu sei, a função maior de qualquer roupa íntima é esconder o delito.

e assim você vai passar a vida toda, se não deixar esse pseudo-altruísmo de lado e apontar o dedo pra ela sim: sim, ela errou! sim, ela te sufocou, ela não te respeitou, ela pirou em coisa simples, ela viu coisa onde não existia, ela te pediu o que tu não querias dar, ela tentou te fazer ser alguém que era alguém que não era você. em suma, ela é humana! (pasme). não, não estou te dizendo para agora trocar o chororô pelo "eu te odeeeeeio!" que aí é trocar uma criança pela outra. digo apenas que o adjetivo "perfeito" não se aplica a humanos, e o engodo disso chama-se "idealização".

a última etapa é a de superar a idéia que você tinha de alguém e colocar ela no mundo dos homens, pra jogo mesmo: quem tiver a mão maior, vai levar papai, não tem jeito. aproveita e mata essa idéia que tu tens de ti enquanto idéia que ela tinha de ti: sim, seja tu mesmo e arque com isso. tá certo que tu não és nenhuma marvilha, mas eu te garanto que no mercado das gentes, tem quem esteja disposta a te levar da prateleira.

o relacionamento acabou, mas sem enfiar a mão na cara do desgosto fica difícil seguir em frente. sim, deu tudo errado mesmo, e é isso aí, control+alt+del meu filho, só que desta vez, larga mão desse modo de segurança.

feito isso a coisa muda completamente de figura: todo mundo é campeão em alguma coisa, disse a pessoa: seja tu o medalista em andar pra frente.

Menos Hegel, mais Engels.